Raízes do conflito

Rússia e Ucrânia: a cronologia de uma guerra não declarada

O cerne do atrito: Moscou não aceita a independência ucraniana e tenta bloquear a aproximação de Kiev com o Ocidente

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Forças Armadas da Ucrânia fazem exercício militar na região de Donbass, em abril de 2021. - Forças Armadas da Ucrânia/AFP

As tensões entre a Rússia e a Ucrânia têm uma história que remete à Idade Média. Ambas possuem raízes comuns que se estendem até a época do antigo Estado da Rússia de Kiev, nas terras eslavas do leste. Esse é o motivo pelo qual o presidente russo, Vladimir Putin, se refere aos dois países como "um só povo".

O fato, porém, é que as duas nações estão divididas há séculos, o que resultou no surgimento de dois idiomas e duas culturas proximamente relacionadas, mas bastante distintas.

Quando a Rússia se desenvolveu politicamente em império, a Ucrânia se provou incapaz de estabelecer um Estado próprio. No século 17, uma ampla região do que é hoje o território ucraniano se tornou parte do Império Russo.

Após a desintegração desse império, em 1917, o país vivenciou um breve período de independência, antes de a União Soviética o reconquistar à força.

Anos 1990: Rússia se desprende da Ucrânia

Em dezembro de 1991, Ucrânia, Rússia e Belarus assinaram um acordo que selava efetivamente o fim da União Soviética. Moscou, porém, pretendia manter sua influência na região através da recém-criada Comunidade dos Estados Independentes (CEI).

O Kremlin também calculava que o fornecimento de gás natural a baixo custo manteria a Ucrânia em sua órbita. Mas as coisas se desenrolaram de maneira bem diferente. Enquanto Rússia e Belarus forjaram uma aliança próxima, a Ucrânia se aproximava cada vez mais do Ocidente.

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Isso não passou despercebido pelo Kremlin, apesar de não bastar para gerar um conflito entre os dois lados na década de 1990. Moscou parecia não estar preocupada, enquanto o Ocidente não demonstrava qualquer intenção de integrar a Ucrânia à sua esfera de influência. A Rússia lidava com uma depressão econômica e se via amarrada no conflito militar na Tchetchênia.

Em 1997, Rússia e Ucrânia assinaram o Tratado de Amizade, Cooperação e Parceria, conhecido como o "Grande Tratado", através do qual Moscou reconhecia as fronteiras oficiais da Ucrânia, incluindo a Península da Crimeia, região que abriga uma maioria étnica russa.

Racha na amizade pós-soviética

A primeira grande crise diplomática entre os dois lados surgiu com a chegada de Putin ao poder. Em 2003, a Rússia começou a construir, inesperadamente, uma barragem no estreito de Kerch, próximo à ilha ucraniana de Tulza – entre o território russo e a Península da Crimeia.

Kiev considerou isso uma tentativa russa de redesenhar as fronteiras nacionais. O conflito somente foi resolvido após um encontro frente a frente entre os dois presidentes. A construção foi suspensa, mas a fachada de amizade entre os dois lados começou a demonstrar rachaduras.

As tensões de agravaram durante as eleições presidenciais na Ucrânia em 2004, com Moscou colocando todo seu peso a favor do candidato pró-Rússia Viktor Yanukovych. A chamada Revolução Laranja evitou que ele assumisse. A eleição foi declarada fraudulenta, e o candidato pró-Ocidente Viktor Yushchenko se tornou presidente.

Uma invasão russa na Ucrânia?

A Rússia reagiu ao cortar o fornecimento de gás para a Ucrânia em duas ocasiões, em 2006 e 2009, além de interromper também o abastecimento para a União Europeia.

Em 2008, o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, pressionou pelo início do processo de adesão da Ucrânia e da Geórgia à Otan, apesar dos protestos de Putin, cujo governo não reconhece totalmente a independência ucraniana.


Militares da Guarda Nacional da Ucrânia que participaram em um exercício militar perto do porto de Mariupol, no Mar de Azov, em 19 de Abril de 2021 / AFP PHOTO/Ukrainian Interior Ministry

A Alemanha e a França frustraram os planos de Bush em uma cúpula da Otan em Bucareste, na Romênia, onde a adesão ucraniana foi discutida, sem que fossem estabelecidos os prazos para esse processo.

Após as coisas não irem tão bem quanto esperado em relação à Otan, a Ucrânia fez uma nova tentativa de reforçar seus laços com o Ocidente, através de um acordo de associação com a União Europeia. Mas, no verão de 2013, poucos meses antes da assinatura do documento, Moscou passou a exercer forte pressão econômica sobre Kiev e forçou o governo do então presidente Yanukovych a congelar o acordo. 

O governo russo impôs um embargo sobre produtos ucranianos exportados para o país, o que insuflou os protestos em massa em toda a Ucrânia. Em fevereiro do ano seguinte, o presidente ucraniano fugiu para a Rússia.

Anexação da Crimeia se torna ponto de inflexão

O Kremlin se aproveitou do vácuo de poder em Kiev e anexou a Península da Crimeia em março de 2014. Esse foi um ponto de inflexão nas relações entre os dois países e o início de uma guerra não declarada.

Ao mesmo tempo, forças paramilitares russas começaram a mobilizar um levante separatista na região de Donbass, no leste ucraniano, e instituíram "repúblicas populares" lideradas por Moscou, com simulacros de Estados em Donetsk e Lugansk.

O governo de Kiev esperou até depois da eleição presidencial de maio de 2014 para lançar uma grande ofensiva militar, que chamou de operação antiterrorismo. 

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Em junho de 2014, o presidente recém-eleito, Petro Poroshenko, se reuniu com Putin na ocasião dos 70 anos da invasão da Normandia, na Segunda Guerra Mundial. O encontro, que passaria a ser conhecido como as conversações em Formato Normandia, ocorreu sob mediação da Alemanha e da França.

Ao mesmo tempo, o Exército ucraniano se mostrou incapaz de expulsar os separatistas. No final de agosto, Kiev acusou Moscou de intervir militarmente em larga escala, o que o Kremlin nega. Forças ucranianas próximas a Iloviask, a leste de Donetsk, foram derrotadas, em um episódio que se tornou um ponto de virada na guerra. O conflito foi oficialmente encerrado em setembro, com a assinatura de um cessar-fogo em Minsk.

Guerra de exaustão em Donbass

O que se seguiu foi uma guerra de exaustão que continua até os dias atuais. No início de 2015, os separatistas lançaram uma nova ofensiva, segundo Kiev, apoiados por tropas russas que, antes dos combates, removeram de seus uniformes suas identificações, o que Moscou também nega.

As forças ucranianas sofreram uma nova derrota, dessa vez na cidade estrategicamente importante de Debaltseve, de onde foram forçadas a se retirar. A intermediação do Ocidente resultou no que passaria a ser conhecido como o Protocolo de Minsk, um acordo que serve como base para os esforços de paz, mas que até hoje não chegou a ser cumprido.

A última vez em que houve uma ponta de esperança de paz na região foi no outono de 2019, quando soldados dos dois lados foram retirados das linhas de frente. A chamada Cúpula da Normandia em Paris, em dezembro de 2019, marcou a última vez em que os dois lados se sentaram à mesma mesa.

O presidente russo não tem interesse em se reunir frente a frente com seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, a quem Moscou acusa de não cumprir o Tratado de Minsk. Putin continua a exigir que os Estados Unidos mantenham a Ucrânia fora da Otan e que o país não receba ajuda militar. A Otan rejeita categoricamente essa exigência.