A herança de violência contra os povos originários no Canadá voltou à tona neste ano de 2021 quando milhares de restos mortais de crianças indígenas começaram a ser descobertos no país. Os achados fizeram com que grupos e movimentos sociais se organizassem para pressionar as autoridades canadenses por investigações e reparações.
Foi a partir de maio que os cadáveres começaram a ser descobertos, sendo que mais de 1.300 deles foram encontrados até o momento. Em Kamloops, na província de Colúmbia Britânica, próximo ao edifício de uma antiga escola residencial para indígenas, estavam enterrados os cadáveres de 215 crianças.
O caso precedeu uma série de novas descobertas de cadáveres em outras regiões do país: 750 covas encontradas na região de um antigo colégio na província de Saskatchewan, no centro-oeste do país, em junho, e depois mais 182 no antigo internato católico St Eugene's Mission, em Colúmbia Britânica, ao fim do mesmo mês.
Todos esses casos têm algo em comum: são frutos do sistema de escolas residenciais para crianças indígenas que foi estabelecido entre a Igreja Católica e o governo do Canadá no final do século XIX, tendo funcionado entre 1870 e 1990. O último local do tipo foi fechado em 1996.
Ainda em julho, mais 160 túmulos foram encontrados na Ilha Kuper, mesma província da escola anterior, totalizando restos mortais de mais de 1.300 crianças encontrados até o momento. A estimativa é de que ao menos 6 mil crianças indígenas tenham morrido nesses locais, de acordo com a Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá.
A assimilação forçada de cerca de 150 mil crianças indígenas para os internatos aconteceu a partir de 1920 quando uma emenda na Indian Act (“Lei do Índio”, em tradução livre), implementada originalmente em 1876, tornou obrigatória a adesão de crianças indígenas às escolas residenciais, ao mesmo tempo que tornou ilegal que elas frequentassem qualquer outra instituição de ensino.
O governo concordou em fornecer educação aos jovens indígenas para que passassem a depender menos de fundos públicos e passou a colaborar com missionários cristãos para encorajar a conversão religiosa.
Os líderes indígenas, explica o portal The Canadian Encyclopedia, “esperavam que a escolaridade euro-canadense ajudasse seus jovens a aprender as habilidades da sociedade recém-chegada e os ajudasse a fazer uma transição bem-sucedida para um mundo dominado por estranhos”.
Foram 139 internatos que existiram oficialmente. Por mais de cem anos, crianças eram retiradas de casa, isoladas de seus familiares e viviam em escolas separadas por gênero. Eram proibidas de falar suas próprias línguas e de praticar suas crenças. Não raro recebiam novos nomes, europeus ou cristãos. Abusos físicos, psicológicos, emocionais e até sexuais também eram relacionados a estes locais, o que motivou algumas das mortes hoje reconhecidas.
Assim como na colonização da América Latina que dizimou povos indígenas, não somente por meio de embates com armas, mas por varíola, sarampo, tifo e caxumba, crianças indígenas no Canadá também morreram por doenças trazidas pelos colonizadores, como a tuberculose.
O professor e pesquisador de História da América pela Universidade de São Paulo (USP) Sean Purdy avalia que a maior parte das mortes foram causadas pela pobreza, "já que a tuberculose é considerada ‘doença de pobre’ e a saúde pública no Canadá só começou nos anos 1950”.
“A similaridade entre os processos de colonização dos povos indígenas [nas Américas] é o processo de genocídio”, explica o historiador em entrevista a Opera Mundi. No Canadá, ele descreve esse processo como uma série de “tratados não respeitados” e “um sistema de reservas instituídas, onde o direito pleno dos povos indígenas não foi respeitado”.
Na obra “Recollections of an Assiniboine Chief” (1972), Daniel Kennedy (Ochankuga’he) compartilhou experiências na escola residencial Qu'appelle (Lebret). “Em 1886, com a idade de 12 anos, fui laçado, amarrado e levado para a escola do Governo em Lebret. Seis meses depois de me matricular, descobri, para minha tristeza, que havia perdido meu nome, e um nome em inglês havia sido etiquetado em mim em troca.”
“Cumprindo a promessa de civilizar o pequeno pagão, cortaram minhas tranças, o que, aliás, segundo o costume tradicional Assiniboine, são sinal de luto”, escreveu Kennedy, explicando que quanto mais próximo era um parente, mais próximo seria o corte de um pedaço da trança quando o familiar morresse.
No registro de suas memórias, ele diz que após ter todo o cabelo cortado na escola, perguntou-se “em silêncio” se sua mãe havia morrido, “pois cortaram meu cabelo rente ao couro cabeludo”.
Em 1969, o governo canadense passa a assumir a responsabilidade pelas escolas residenciais indígenas remanescentes, tirando-as das mãos da igreja. Nesta década, a influência desses internatos começa a diminuir, e o último local do tipo foi fechado em 1996.
Movimento indígena organizado
Emendas na Indian Act, ao longo dos anos, também tornaram ilegal que os povos das Primeiras Nações – termo cunhado em 1980 que remete a um dos três grupos de povos originários do Canadá – praticassem cerimônias religiosas e encontros culturais, mesmo em suas reservas.
Os outros dois povos originários são Métis, pessoas com ascendência europeia e indígena, e Inuits, povos indígenas que comumente vivem em regiões no norte do país.
A partir dos anos 1960, a situação começa a mudar com a organização de movimentos sociais indígenas no Canadá. A partir de 1975 mais 25 tratados “modernos” foram assinados para retirar o conteúdo racista dos documentos.
Surge a Irmandade Nacional dos Índios, órgão político nacional constituído pela liderança de várias organizações provinciais e territoriais, para pressionar por mudanças nas políticas federais e provinciais em relação aos direitos indígenas e à soberania dos povos originários. O agrupamento foi substituído pela Assembleia das Primeiras Nações em 1982.
O Congresso dos Povos Aborígenes (CAP) foi fundado em 1971 representando os Métis e Inuits do Sul do território, que vivem fora das reservas indígenas.
“Os povos indígenas conseguiram se consolidar enquanto organização política no nível provincial, tribal e federal no decorrer da explosão de movimentos sociais da década de 1960", destacou o professor Sean Purdy.
Em 2021, cidades canadenses cancelaram ações no Dia do Canadá, feriado nacional que são realizadas comemorações pelo território canadense. A data de 1º de julho marca a fundação do país pelas colônias britânicas em 1867. Ainda neste ano, um grupo de manifestantes chegou a derrubar as estátuas da rainhas Vitória e Elizabeth II na cidade de Manitoba em protesto pela descoberta das valas não identificadas.
Resposta do governo
Em 2008, o então primeiro-ministro canadense Stephen Harper ofereceu um pedido formal de desculpas aos antigos estudantes do Sistema de Escolas Residenciais para Indígenas. “Hoje reconhecemos que essa política de assimilação foi errada, causou muitos danos e não tem lugar em nosso país”, afirmou na ocasião.
Quando se elegeu em 2015, Justin Trudeau, atual primeiro-ministro, havia prometido um novo relacionamento com os povos originários. Quando houve a descoberta das covas, ele afirmou que o país apoiaria as comunidades indígenas enquanto se investigava “a extensão deste trauma”.
Para Sean Purdy, a resposta de Trudeau frente às descobertas de covas indígenas é uma “obrigação básica''. O especialista avalia que o premiê “é liberal e está envolvido na construção de oleodutos, que vão ser construídos em terras indígenas, mesmo com protestos dos povos”.
O líder canadense é responsável por uma campanha para pressionar Biden a manter o oleoduto Keystone XL, que liga areias da província local de Alberta passando por terras indígenas, às refinarias costeiras no Texas, sul dos Estados Unidos.
De propriedade da empresa TC Energy e do governo de Alberta, o Keystone XL recebeu oposição de ambientalistas e grupos indígenas no país, pelo risco de vazamentos de petróleo e danos a locais considerados sagrados pelos povos originários.
“Por um lado, ele critica essa história horrível, o que é uma obrigação dele, por outro lado, ele está empurrando um projeto neoliberal no Canadá que vai prejudicar pessoas indígenas. Não podemos separar esses dois aspectos”, defende Purdy.
Condições socioeconômicas
Os povos indígenas vivem até hoje reflexos da colonização e exploração do território canadense. Dados do Canadian Encyclopedia mostram que a taxa de empregabilidade entre pessoas indígenas é menor do que entre pessoas não indígenas: 57,9% entre povos nativos, e 62,1% entre não indígenas.
Em relação a renda, a receita média em 2016 para não indígenas era de $31.44, enquanto para os povos indígenas variava em $21.23 entre as Primeiras Nações, $29.068 entre os Métis, e $23.63 entre os Inuits.
Em 2016, um em cada cinco indígenas, em torno de 20% do total, vivia em uma casa que exigia grandes reparos, em comparação com 6% entre a população não indígena. A superlotação é outro problema que afeta casas de pessoas indígenas. Em 2016, 18,3% viviam em moradias superlotadas, em comparação com 8,5% da população não indígena.
A expectativa de vida de uma pessoa indígena pode ser de 10 a 15 anos mais curta, e as taxas de mortalidade infantil podem ser duas a quatro vezes mais altas entre os povos originários. As taxas de suicídio entre os jovens das Primeiras Nações são cerca de cinco vezes a média nacional, enquanto as taxas de jovens Inuit são aproximadamente 10 vezes a média nacional.
Em 2019, 48% das famílias das Primeiras Nações não tinham renda suficiente para cobrir suas despesas alimentares. Em comparação, a taxa de insegurança alimentar do país era de 8,4%.