O presidente dos EUA, Joe Biden, conversou com o seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, no último domingo (2) e garantiu que Washington e seus aliados irão “responder de forma decisiva” no caso de Moscou invadir seu vizinho.
A conversa de Biden com Zelensky aconteceu após telefonema com o presidente russo, Vladimir Putin, em 30 de dezembro. Na ocasião, o presidente dos EUA alertou seu colega russo sobre possíveis sanções contra a Rússia caso ocorresse uma invasão à Ucrânia, embora Moscou tenha negado sistematicamente as especulações sobre quaisquer planos a esse respeito. Putin, por sua vez, deixou claro que tais medidas punitivas significariam, efetivamente, o rompimento das relações entre os dois países.
A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, afirmou que os Estados Unidos não planejam responder "ponto por ponto" às propostas russas de garantias de segurança, inclusive porque "muitas delas não merecem".
Essas rodadas de conversas bilaterais ocorrem porque desde o final de outubro os EUA vêm acusando a Rússia de concentrar tropas perto da fronteira com a Ucrânia, argumentando que haveria um suposto planejamento de invasão no território ucraniano.
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Em meados de dezembro, a Rússia apresentou propostas sobre garantias de segurança aos Estados Unidos, que incluía demandas russas. Entre elas estava a exigência de que repúblicas pós-soviéticas não fossem admitidas na Otan. Putin prometeu reagir se essas propostas fossem rejeitadas.
Quais são os objetivos da Rússia?
O cientista político Alexander Konkov, em entrevista ao Brasil de Fato, afirmou que há um consenso entre os especialistas militares russos que as forças da OTAN representam uma ameaça para o país, defendendo a tese de que “todos os esforços que a Rússia adotou para o desenvolvimento de suas forças armadas têm exclusivamente um caráter de defesa”.
Segundo ele, para atenuar a possibilidade de uma corrida armamentista, a proposta da Rússia é sentar à mesa de negociações com os EUA para que sejam adotadas garantias e condições jurídicas para que não ocorra a expansão da Otan para o leste e nem o estabelecimento de complexos de ataque em território de países vizinhos à Rússia.
Konkov observou também que a relação com os EUA para a Rússia tem um caráter singular não somente pela própria política externa em si, mas que essa interação também interfere no entendimento da Rússia sobre a sua posição no mundo. De acordo com o cientista político, todo Estado que busca afirmação e autonomia no cenário internacional, busca estabelecer uma relação favorável com os EUA, considerando sua relevância no mundo. Assim, ele afirma que, para a Rússia, é fundamental que neste diálogo “a Rússia sempre se encontre na posição de sujeito e não de objeto da relação”.
“Para a Rússia é importante que não sejam os EUA que ditem à Rússia como, onde e de que forma se pode agir, mas que no contexto de uma relação e um diálogo de reciprocidade, de um diálogo igualitário, a Rússia e os EUA possam encontrar decisões mutuamente favoráveis para os principais problemas de caráter global e regional”, completou.
Já o especialista em assuntos militares e pesquisador sênior da Escola Superior de Economia da Rússia, Vasily Kashin, ao comentar a possibilidade da tensão escalar para a iminência de um uso da força, disse que a retórica de ultimatos entre Rússia e EUA visa fortalecer a posição de negociação de cada uma das partes.
Segundo ele, ambos os lados tendem a recorrer a essa retórica dura como ferramenta de negociação. “Mas um conflito militar não é necessário para nenhum dos lados. Pode surgir de ações imprevisíveis de atores menores, como a Ucrânia, mas a probabilidade é baixa”, disse ao Brasil de Fato.
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Ele destacou que as relações EUA-Rússia são “abertamente hostis”, no entanto frisou que os Estados Unidos estão claramente cientes de que seu principal adversário não é a Rússia, mas a China.
“Nesta fase, ambos os países estão interessados, no mínimo, na estabilização e, no máximo, na normalização das relações. No entanto, é inaceitável para a Rússia o acúmulo de forças americanas no Leste da Europa Oriental e nos países da ex-URSS. Por outro lado, como a Rússia foi considerada responsável pela crise política interna americana, os Estados Unidos temem parecer fracos diante da Rússia”, completou.
Incógnita do fator Cazaquistão
A Ucrânia tem sido palco da maior instabilidade regional da Europa nos últimos anos e principal motivo de tensão entre Moscou e Washington, mas ainda é uma incógnita se os recentes protestos que explodiram no Cazaquistão na última semana podem alterar este quadro.
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Inicialmente adotando um tom diplomático, Moscou manteve o discurso de que o país aliado poderia resolver a situação internamente, mas com o aumento da tensão no país vizinho a Rússia entrou em cena e, após o pedido do presidente do Cazaquistão, Kassym Jomart Tokayev, enviou 2,5 mil tropas para ajudar na estabilização do país.
Já o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, afirmou que os EUA defendem uma "resolução pacífica e respeitadora dos direitos humanos face à crise" no Cazaquistão.
Vale lembrar que o Cazaquistão é um aliado estratégico da Rússia e exporta um grande volume de petróleo para a China, fazendo fronteira com ambos os países. Uma maior deterioração da estabilidade do país a médio prazo poderia aumentar o interesse de atores relevantes como EUA e Rússia no futuro político do país da Ásia Central, sendo motivo de novas disputas geopolíticas.
Administração democrata é “mais direta” com Moscou
Às vésperas de completar um ano da sua posse como presidente dos EUA, Joe Biden mostrou que, no que diz respeito à relação com a Rússia, já houve uma inflexão em relação à dinâmica do diálogo adotada pela administração de Donald Trump.
É o que afirma a professora de relações internacionais da UNIFESP, Cristina Pecequilo, que disse ao Brasil de Fato que as relações entre EUA e Rússia na administração Biden sofreram uma “piora relativa” em comparação à administração anterior.
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De acordo com ela, durante o governo Trump, havia uma certa acomodação entre os dois países e um reconhecimento da relevância estratégica de ambas as posições. “Isso não significa que não existiram conflitos, que de fato ocorreram em diversas áreas, incluindo a retomada da questão da Ucrânia, mas principalmente acusações de espionagem e trânsito de influência. Mas havia uma certa acomodação”, argumentou.
“O que a gente observa no governo Biden é que a postura do presidente e dos democratas com relação a Putin é muito mais direta. Isso nós já vimos, por exemplo, quando Biden chamou Putin de assassino", acrescentou Pecequilo.
Ela observou que a tendência é que a relação tensa entre os dois países seja marcada por essas trocas de acusações mútuas, mas comentou também que é necessário lembrar a diferença de tratamento que os Estados Unidos dão para a Ucrânia e para a Rússia.
“A Ucrânia tem diversos problemas, principalmente com forças de extrema direita bastante radicais, bastante nacionalistas, que colocam em xeque todo esse discurso americano de que seria um país absolutamente pacífico. Então há uma diferença de tratamento quando se acusa a Rússia de Putin de alguns desrespeitos nesses campos de direitos humanos. Enquanto isso a Ucrânia ela passa relativamente impune, tanto pelos Estados Unidos quando pela União Europeia”, argumentou.
Além disso, a pesquisadora destacou que a Rússia é “sempre um pivô estratégico muito importante na Eurásia por conta da sua localização geográfica, por conta dos seus recursos naturais, e por conta da possibilidade de ampliar o seu poder pelas parcerias com a China”.
Apesar das tensões nos últimos contatos entre a Rússia e EUA, foi reforçado pela assessoria presidencial russa que Joe Biden e Vladimir Putin manifestaram disposição para avançar diplomaticamente no diálogo na semana que vem. A próxima reunião bilateral acontecerá em Genebra em 9 e 10 de janeiro, enquanto a cúpula Rússia-Otan será realizada em 12 de janeiro, em Bruxelas.
Edição: Arturo Hartmann