É sintomático trocar um representante do controle social do SUS por um representante do mercado
As inscrições para a seleção de profissionais para o Programa Médicos pelo Brasil (PMpB) começam às 10h desta segunda-feira (10) e terminam às 23h de 6 de fevereiro, no horário de Brasília. No total, poderão ser contratados 4,6 mil médicos para 4.919 municípios e Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI).
O PMpB, lançado ainda em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, vai substituir gradativamente o Projeto Mais Médicos para o Brasil, instituído em 2013, no primeiro mandato Dilma Rousseff.
De acordo com a Lei 13.958, de 2019, que regulamentou o Médicos pelo Brasil, o programa tem “a finalidade de incrementar a prestação de serviços médicos em locais de difícil provimento ou de alta vulnerabilidade e de fomentar a formação de médicos especialistas em medicina de família e comunidade, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps)”.
“Diagnóstico equivocado”
Para Vinicius Ximenes, da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP), o programa apresenta alguns equívocos em relação ao projeto anterior. Em suas palavras, “as divergências começam por uma compreensão de diagnóstico da situação de médicas e médicos no Brasil”, afirma. “Há um problema de diagnóstico grande por parte do governo Bolsonaro. Ele buscou se apoiar nos elementos mais corporativos de compreensão médica e não entender os dados baseados de necessidades de saúde da população.”
“O Programa Mais Médicos trabalhava com um problema qualitativo e quantitativo: nossos médicos no Brasil estão mal distribuídos, mas também o Brasil ainda não consegue produzir uma quantidade suficiente de médicos, conforme as nossas necessidades sociais. E o Programa Médicos pelo Brasil avalia de que há um problema meramente de vínculo de trabalho: resolvendo o problema de vínculo de trabalho e garantindo a contratação via CLT, o governo federal vai garantir médico para todos os lugares que precisa. A gente sabe que o problema é muito mais profundo”, afirma Ximenes.
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O primeiro projeto era estruturado em três eixos: reforma e ampliação das Unidades Básicas de Saúde (UBS); formação de médicos e médicas; e provimento emergencial de profissionais.
De acordo com a legislação atual, o programa visa garantir o acesso de primeiro contato dos profissionais com a população e a integralidade, a continuidade e a coordenação do cuidado, além de desenvolver e intensificar a formação de médicos especialistas em medicina de família e comunidade.
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A formação é destinada aos médicos-bolsistas se refere a um curso de dois anos em medicina de família e comunidade. Durante a formação, os médicos trabalharão como estagiários no programa. Transcorrido o período, os médicos serão submetidos a uma avaliação para aprovação ou não para a contratação pela Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), no regime celetista.
Com esse diagnóstico equivocado, acredito que não vai conseguir produzir maiores resultados frente ao problema. Fora que a proposta que vem se dando de valorizar as ações de provimento, como está sendo colocado, não aproveita o potencial dos programas de residência em medicina de família e comunidade [existentes], que poderiam também estar apoiando as ações de provimento”, afirma.
Revalidação do diploma
Um dos pontos de divergência entre os programas é a obrigatoriedade do exame de revalidação do diploma, o Revalida. Entre 2013 e 2018, o Mais Médicos contratou em torno de 20 mil médicos cubanos por meio de um convênio firmado com o governo de Cuba e intermediado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), sem a necessidade do Revalida, o que foi contestado na época por diversas entidades médicas e foco de ações no Supremo Tribunal Federal (STF).
Ainda que a corte tenha decidido pela não obrigatoriedade do exame, em 2017, o Médicos pelo Brasil exige a revalidação do diploma.
Durante sua campanha eleitoral, em 2018, Jair Bolsonaro (PSL), afirmou que expulsariam os médicos cubanos que não possuíssem o Revalida. Em decorrência, cerca de 8,5 médicos vinculados ao Mais Médicos deixaram o Brasil, provocando desassistência principalmente nos municípios de áreas de difícil acesso.
Serviço Social Autônomo
A execução do Médicos pelo Brasil será feita por meio da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), instituída pelo Decreto nº 10.283, em março de 2020. Segundo o texto do decreto, a agência pode firmar contratos e convênios com entidades privadas.
Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Adaps “deve se estruturar como um Serviço Social Autônomo (SSA), modalidade geralmente associada ao chamado ‘Sistema S’, conjunto de entidades privadas paraestatais vinculadas a confederações patronais que recebem recursos públicos para prestação de serviços sociais e de formação profissional”.
Os críticos ao programa defendem que a Medida Provisória (MP) 890, de 2019, que institui o Programa Médicos pelo Brasil abre brechas para a privatização da atenção primária à saúde. O Conselho Deliberativo da Adaps terá um representante setor privado de assistência à saúde.
Após a publicação da MP, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares publicou uma nota criticando esse aspecto.
“Esse tipo de dissociação é fundamental para uma agenda de terceirização de responsabilidades do Estado pela assistência, entregando a prestação direta de serviços de atenção primária para planos de saúde, que vêm acumulando expertise no campo de APS nos últimos anos a partir da vinda de muitos médicos de família para o âmbito destas organizações. Para nós, é muito sintomático trocar um representante do controle social do SUS por um representante do mercado para entender para onde rumará a Política de Atenção Primária Brasileira”, alerta a nota.
Como o Médicos pelo Brasil irá funcionar
Para os médicos bolsistas que concorrerão ao estágio experimental remunerado, haverá uma bolsa formação para atuarem em atividades assistenciais e se aperfeiçoarem para o atendimento na Saúde da Família, sendo 40 horas assistenciais e 20 horas formativas. Neste caso, a remuneração é de R$ 12 mil podendo, também podendo ser acrescida de incentivos para atuação em localidades remotas.
O processo seletivo para médico de família e comunidade será composto por um curso de formação, eliminatório e classificatório, com duração de dois anos, e uma prova final escrita para a habilitação do profissional. O curso será promovido por uma instituição de ensino parceira.
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Para os médicos contratados, aprovados em todas as etapas de seleção, o salário-base do médico da Adaps será de R$ 12,6 mil a R$ 18,4 mil, divididos em quatro níveis de senioridade. A carga horária também será de 40 horas semanais.
Para os candidatos a tutores médicos, serão 40 horas semanais, distribuídas entre atividades assistenciais e de ensino e serviço. O salário é de R$ 12,6 mil, podendo ser acrescido de benefícios.
Para participar, os médicos devem estar devidamente registrados no Conselho Regional de Medicina (CRM), e os candidatos a tutores médicos devem ter certificado de conclusão de residência em medicina de família e comunidade ou clínica médica ou título de especialista em medicina de família e comunidade ou em clínica médica, emitidos pela Associação Médica Brasileira (AMB).
Edição: Vinícius Segalla