Os brasileiros não têm tradição em consumir sopa de barbatana de tubarão, mas desempenham um papel central para o risco de extinção que, infelizmente, aflige muitas espécies desse predador marinho.
Depois que a maioria das nações proibiu a prática do finning — na qual os animais têm suas barbatanas cortadas fora e são jogados de volta ao mar, por vezes ainda vivos — nosso país se tornou o destino preferencial da carne do animal, vendida aqui com o nome genérico de “cação”. Curiosamente, o Brasil foi um dos primeiros países a proibir o finning, ainda em 1998.
Embora tenha ganhado má fama por conta de filmes como “Tubarão”, de 1975, e pelos raros episódios de ataques a humanos registrados, os tubarões exercem um papel fundamental na cadeia alimentar marinha. Eles se alimentam de espécies que poderiam se tornar pragas se não fosse a ação de algum tipo de predador.
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Além disso, a predação mantêm as populações marinhas saudáveis, ao remover indivíduos senis e doentes. E os tubarões podem até mesmo desempenhar um papel na mitigação das mudanças climáticas, na medida em que servem como estoques de carbono. No entanto, quando os animais são pescados, o carbono termina por retornar à atmosfera.
Há tempos, o consumo de sopa de barbatana e seus maiores adeptos — os chineses — têm sido apontados como a maior ameaça à sobrevivência dos tubarões. Um relatório publicado em 2021 pela ONG WWF, porém, aponta que o mercado de carne de tubarões e raias já supera o de nadadeiras. Mas o documento não investiga o comércio ilegal, tanto da carne como das barbatanas, que se acredita ser na realidade muito maior do que dizem os dados oficiais.
Segundo o relatório, assinado por pesquisadores espanhóis, entre 2012 e 2019 o total movimentado pelo comércio de nadadeiras e carne de tubarões e raias foi de US$ 4.1 bilhões. Desse valor, porém, US$ 1,5 bilhão diz respeito às barbatanas, enquanto US$ 2,6 bilhões se referem à carne de elasmobrânquios, como é conhecido esse grupo de peixes.
O Brasil foi o maior importador de carne de tubarão em volume, tendo recebido 149.484 toneladas entre 2009 e 2019. Nosso maior fornecedor, o Uruguai, exportou 71.750 toneladas de carne de tubarão para cá no período. Líder mundial da exportação do produto, a Espanha nos enviou 30.441 toneladas.
“O declínio das populações de tubarões e raias é um fator que contribui para a deterioração do nosso oceano e é sintomático da sobre-exploração marinha de maneira mais ampla. Para lidar com essa situação antes que seja tarde demais, precisamos de uma melhor compreensão do opaco e complexo comércio global de seus produtos”, destaca o documento.
Diminuição de algumas populações chega a 95%
Inicialmente considerados como pesca incidental por embarcações que estavam oficialmente em busca de pescados de alto valor financeiro, como atum e espadarte, os tubarões passaram a ser o alvo principal de muitas pescarias.
Dois fatores foram importantes: a intensificação da pesca oceânica como um todo, que tornou mais raros os peixes ditos “nobres”; e o aumento da demanda pelas barbatanas pelo mercado asiático. No que diz respeito à pesca, porém, os tubarões não podem ser tratados como outros recursos pesqueiros.
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“Quando falamos de tubarões e raias, não estamos tratando de um peixe como a maioria das pessoas conhece, como a tainha, a traíra, o lambari ou o robalo, os chamados peixes ósseos. Mas, sim, de um grupo que tem padrões reprodutivos e de tempo de vida muito mais parecidos com os de um mamífero do que com os dos peixes”, explica Otto Bismarck Fazzano Gadig, professor do Câmpus do litoral paulista da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São Vicente, que estuda elasmobrânquios há 30 anos.
Enquanto os peixes ósseos geralmente estão aptos a se reproduzir ainda nos primeiros meses de vida e dão origem a muitos filhotes de uma vez a cada ano, os tubarões e raias vão na contramão. Têm uma relativa baixa produção de descendentes (um filhote a cada dois anos, em média); maturidade sexual relativamente tardia (estão aptos a se reproduzir num tamanho muito próximo do que terão na idade adulta), além de crescimento lento e tempo de vida longo.
É difícil imaginar um futuro promissor para um grupo de animais que tem, todos os anos, cerca de 100 milhões de exemplares retirados do mar. No mundo todo, 36% das 1.200 espécies conhecidas de raias e tubarões são consideradas ameaçadas de extinção, e algumas já sofreram uma diminuição de até 95% em suas populações.
Em um estudo publicado em janeiro de 2021 na revista Nature, um grupo internacional de pesquisadores concluiu que, dos anos 1970 até hoje, a abundância desse grupo de peixes caiu 71%, resultado de um aumento de 18 vezes da atividade pesqueira.
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“Para avaliar o estado de conservação de peixes ósseos como sardinha e atum, por exemplo, costumamos usar os chamados modelos de avaliação de estoque.
Essa metodologia tem como prerrogativa o chamado rendimento máximo sustentável, onde, teoricamente, é possível explorar determinada parte da população sem causar danos populacionais no futuro”, explica Rodrigo Barreto, único coautor brasileiro do estudo e pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Marinha do Sudeste e Sul (CEPSUL), órgão vinculado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
“Isso não se aplica aos elasmobrânquios, por conta da biologia desse grupo e do papel ecológico que exercem. Seja por conta da demanda comercial, ou pelo simples fato de ocuparem o mesmo espaço de outras espécies de interesse comercial, eles acabam sendo explorados da mesma forma”, diz.
Atualmente, 14 espécies de tubarão e 29 de raias são listadas nos anexos I e II da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES), que define aquelas que têm seu comércio proibido ou bastante controlado. O Brasil é signatário da convenção desde 1975.
A legislação brasileira sobre o tema, que data de 2014, lista 54 espécies de tubarões e raias que têm a pesca e comércio proibidos em território nacional. Mas, ainda que continue válida, a portaria tem sido alvo de sucessivos ataques, suspensões e flexibilizações. Para piorar, o Brasil não coleta dados para estatísticas pesqueiras em nível nacional desde 2007.
Nos estados que fazem a contagem do que está sendo pescado e desembarcado – São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Santa Catarina – a resolução taxonômica é considerada baixa. Ou seja, muitas espécies são classificadas simplesmente como “cação” ou outros nomes genéricos. Mas ainda que se soubesse as espécies mais capturadas, o fato é que o brasileiro médio sequer tem ideia de que está comendo tubarão cotidianamente.
Cação é tubarão
O termo “cação” nada mais é do que a forma aportuguesada da palavra espanhola que designa tubarão, “cazón”. Qualquer espécie de tubarão, ou mesmo de raia, pode ser vendida com esse nome. E também pode acontecer que a carne de tubarão seja comercializada sob o nome de alguma espécie de peixe ósseo, por um valor mais caro.
Em uma pesquisa realizada em Curitiba (PR), 61% dos entrevistados afirmaram já ter comido “cação”, mas nunca “tubarão”. Outro levantamento, realizado nas cinco regiões do Brasil e ainda não publicado, realizado pela ONG Sea Shepherd Brasil e pela empresa Blend New Research, mostrou que 69% de 5 mil dos entrevistados não sabiam que “cação” é sinônimo de “tubarão”.
Um relatório produzido por pesquisadores paulistas mostrou ainda que 62% dos peixes vendidos em São Paulo, como badejo, por exemplo, se tratava na verdade de tubarão.
Com a campanha “Cação é Tubarão”, a Sea Shepherd Brasil pretende sensibilizar o público sobre o que acontece com esses peixes e entender as razões para o consumo. No site da iniciativa é possível enviar fotos de cação à venda, indicando o preço e a localização.
“Essas informações serão muito importantes para entendermos se de fato a carne de cação é muito consumida porque é barata, ou se há diferenças regionais nos preços, na preferência do consumidor e nos nomes usados no comércio, por exemplo”, diz Bianca Rangel, cientista da organização, atualmente realizando doutorado sobre a fisiologia de tubarões no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).
A campanha inclui ainda a análise de amostras de cação importado para averiguação da espécie e concentração de metais tóxicos, com apoio do Instituto Linha D’Água. Com isso, os ativistas pretendem ter uma leitura detalhada dos diversos problemas relacionados ao tema.
A preocupação com as espécies comercializadas não é à toa. Ainda que muitas tenham a venda permitida no país – o tubarão-azul (Prionace glauca) é oficialmente o mais consumido – o produto fatiado em postas ou em filés pode esconder espécies ameaçadas de extinção.
Quando cita o pescado importado, Rangel se refere a outra peculiaridade que torna o mercado brasileiro mais propício para o consumo de tubarões e raias. Ainda que peixes como raia-viola (Pseudobatos Horkelii), cações-anjo (Squatina gugenheim) e tubarões-martelo ( pertencentes ao gênero Sphyrna ) tenham a pesca e venda proibidas no país, não é vetado importar a carne dessas espécies.
Segundo a Portaria 445, publicada em 2014 pelo Ministério do Meio Ambiente, quem pescar uma das 54 espécies de tubarões e raias que constam na lista de proibições deve devolver o animal ao mar, esteja ele vivo ou morto.
Uma rotulagem apresentando o nome da espécie na embalagem, que poderia dar ao menos a chance de o consumidor fazer uma escolha informada, não é exigida. A legislação brasileira só obriga a rotulagem de pescados importados com o nome da espécie quando se trata de peixes dos grupos do bacalhau e do salmão. Por isso, é comum encontrar em supermercados carne de peixe congelada identificada apenas como “cação”.
O preço atrativo e o fato de ser uma carne branca e sem espinhos são alguns dos fatores que contribuem para a preferência dos brasileiros pelo pescado. Além disso, o fato de nutricionistas recomendarem o consumo de pescados faz com que muitas vezes os cações sejam incorporados inclusive à merenda escolar.
No fim de 2021, a prefeitura de São Paulo abriu licitação para a compra de até 650 toneladas de cação em cubos sem pele para as escolas da rede municipal. Após manifestações da Sea Shepherd Brasil e da Sociedade Brasileira para o Estudo de Elasmobrânquios (SBEEL), o certame foi cancelado.
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O problema do acúmulo de mercúrio
Além da provável presença de espécies ameaçadas nas bancas que oferecem cação, outro problema envolve a presença de contaminantes na carne de predadores como os tubarões. Em uma pesquisa realizada em mercados populares de São Paulo, por exemplo, 54% da carne de tubarão analisada continha níveis de mercúrio em concentrações acima de um miligrama por quilo, máximo considerado aceitável pela legislação brasileira. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda apenas metade dessa concentração.
Um estudo que analisou a carne de tubarão-azul pescado em Itajaí (SC), maior polo pesqueiro do Brasil, mostrou que 21% das amostras tinham o metal em doses acima da recomendação brasileira e 70% além do que estipula a OMS.
Uma vez que organismos aquáticos tendem a absorver e acumular metais em seus tecidos, esses contaminantes passam pela cadeia alimentar, com sua concentração aumentando a cada nível. Predadores do topo da cadeia e de vida longa, como tubarões, mamíferos marinhos e mesmo humanos, acumulam as maiores quantidades.
O Brasil tem regras menos rígidas para a concentração de metais em pescado do que União Europeia, América do Norte e Ásia. Por isso, o mercado nacional torna-se perfeito para o desembarque das carcaças de tubarão que talvez fossem descartadas no mar se não houvesse proibição ao finning.