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Retrocessos na política externa: há esperança?

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O Estado brasileiro deixou de ser respeitado internacionalmente em temáticas nas quais era visto como referência, por exemplo, saúde pública, direitos humanos e meio ambiente - Sérgio Lima / AFP
Na América Latina, notou-se o enfraquecimento da atuação e liderança da diplomacia brasileira

Por Bruna Belasques, Kayque Ferraz e Vitor Hugo do Santos*

 

Com Bolsonaro, o Estado brasileiro deixou de ser respeitado internacionalmente em temáticas nas quais era visto como referência, por exemplo, saúde pública, direitos humanos e meio ambiente. Contudo, é preciso ter em mente que este cenário pode mudar. Para tanto, dois elementos são, sem dúvidas, fundamentais: a retomada do papel do Estado e a questão ambiental no cerne das tomadas de decisão. Estas duas questões devem ser, inevitavelmente, alinhadas a uma terceira: a soberania.

Governo Bolsonaro e o Brasil como pária internacional

O Brasil completará 200 de independência em 2022. Uma política externa soberana em que se afirma não a supremacia, mas a independência do país com relação a autoridades externas e interesses estranhos a nação, é elemento constitutivo de qualquer Estado que se pretenda sério na arena internacional. Contudo, a adoção de uma política externa de extrema direita, a aversão ao multilateralismo, o negacionismo científico e o ataque aos direitos humanos e ao meio ambiente pelo governo Bolsonaro transformaram o Brasil em um pária internacional, e um país no qual não se confia nem para a defesa dos próprios interesses. Por isso, o país deixou de ser respeitado internacionalmente em temáticas nas quais era visto como referência, por exemplo, saúde pública, direitos humanos e meio ambiente.

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Mesmo a troca de ministros durante o ano – a saída de Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Meio Ambiente) para a entrada, respectivamente, de Carlos França e Joaquim Leite – tende a ser igualmente nociva em termos práticos, uma vez que foram substituídos devido às pressões externas e não por não se alinharem ao ideal bolsonarista. Ambos continuam a promover políticas que não estão em consonância com a soberania brasileira.

Ainda há esperança para o Brasil? Fazemos uma retrospectiva da política externa brasileira e apontamos caminhos para o futuro.

Um breve retrospecto de 2021: nenhum fruto colhido

França assumiu a chefia do MRE afirmando que não havia preferências diplomáticas específicas na PEB (Política Externa Brasileira), nem “alinhamento automático” com os EUA. O discurso serviu para amenizar tensões com a China, tanto por conta dos discursos xenofóbicos, que o chanceler anterior e membros do governo haviam feito, quanto em virtude do alinhamento ao trumpismo por parte do governo Bolsonaro. Contudo, apesar de defender uma relação “pragmática” entre os dois Estados, as marcas centrais da PEB ainda permaneceram sendo a incoerência, o negacionismo científico e a xenofobia ao lidar com o maior parceiro comercial brasileiro, o que abriu espaço para atuação de novos atores. Destaca-se o aumento da relevância da atuação empresarial e da paradiplomacia nas relações com a China.

Observa-se também que as relações com os EUA apresentaram atritos ao longo de 2021. Durante o governo Trump, a subordinação brasileira era evidente. Após Joe Biden assumir a presidência, a diplomacia estadunidense trouxe logo de início o multilateralismo e o meio ambiente como prioridades em sua agenda, em choque frontal com as posturas brasileiras. No que diz respeito ao meio ambiente, em encontros como a Cúpula do Clima e a COP 26, o Brasil deixou de ser um ator respeitável e propositivo em temáticas ambientais, para ser visto como um problema, em virtude do aumento do desmatamento da floresta amazônica, do desrespeito às terras dos povos originários, da proliferação de queimadas. Assim, ao país, só restou desempenhar um papel periférico nas negociações internacionais muito aquém do seu potencial.

Se o desrespeito à demarcação das terras indígenas foi uma face da violação de direitos humanos ao longo de 2021, a temática da vacinação foi, sem dúvidas, outra. Isto tornou-se ainda mais evidente por meio da CPI da Covid. De acordo com uma série de depoimentos colhidos pelos senadores, as dificuldades na aquisição de insumos (como oxigênio para pacientes com Covid-19) e a demora para aquisição de vacinas pelo governo federal, foram associadas ao negacionismo bolsonarista e a ausência de planejamento. Além disso, houve também atraso por parte do governo federal na adesão ao Covax Facilit, consórcio da OMS para ampliação do acesso à vacina.

Esses elementos evidenciam, para além do desrespeito aos direitos humanos, a dependência brasileira de importações em termos de saúde. O Brasil não foi capaz de desenvolver a própria vacina, ficando refém da tecnologia estrangeira, tampouco de suprir a demanda de oxigênio e ventilação mecânica em capitais brasileiras, a exemplo do colapso ocorrido em Manaus. O Brasil logrou ser o único país em desenvolvimento a se posicionar de forma contrária à proposta liderada por Índia e África do Sul (out/2020) para a quebra das patentes das tecnologias de prevenção, contenção e tratamento da Covid-19, o que distanciou o país da cooperação que vinha desenvolvendo junto aos países africanos na última década em temas de saúde, e evidenciou a falta de articulação com o Sul Global necessárias ao maior acesso a bens de saúde. O Brasil doou apenas tardiamente vacinas ao continente africano e não propôs uma distribuição igualitária para a venda de vacinas para os países do globo. Foram oportunidades perdidas de se aproximar e liderar o mundo em desenvolvimento.

Na América Latina, notou-se o enfraquecimento da atuação e liderança da diplomacia brasileira. Fora da CELAC (Comunidade dos Estados Latinos Americanos e Caribenhos), o Brasil abriu espaço para uma maior liderança do México na região. No caso do Mercosul, destacaram-se os descompassos dentro do bloco, especialmente entre o Brasil e a Argentina, pela tentativa do governo brasileiro de redução da Tarifa Externa Comum (TEC), medida que foi rejeitada por Buenos Aires.

Dentro de casa, um fenômeno que se intensificou em 2021 foi o desejo de brasileiros de migrarem para outros países. As razões para isso são múltiplas, dentre elas, a crise econômica, o desemprego e a ausência de políticas de investimento em ciência e tecnologia. Por outro lado, empresas brasileiras no exterior estão sendo obrigadas a “voltar para casa”, em um fenômeno de “desinternacionalização”, isto é, a desconstrução da política petista que permitiu que uma série de empresas pudessem expandir operações no exterior por meio da política do BNDES de “campeãs nacionais” – alguns casos com mais sucesso que outros. Um exemplo foi a venda da subsidiária da Petrobras no Uruguai, que era responsável pela distribuição e comercialização de derivados e pela distribuição de fertilizantes líquidos. Em última instância, há um elo que une a fuga de brasileiros e a desinternacionalização: a ausência de políticas de investimento público. Não há o que celebrar.

(Re)Construir, é preciso

A despeito do triste retrospecto, é preciso ter em mente que este cenário pode mudar. Ainda que a reconstrução seja longa e árdua. A política externa, no sentido amplo, certamente, será uma das pautas no debate eleitoral deste ano, possivelmente, aparecendo sobretudo no que diz respeito às questões ambientais. É necessário, no entanto, pensar, desde já, em algumas medidas de PEB que possam vir a ser parte da (re)construção de um projeto de país que irá reparar o dano bolsonarista. Isto só será implementado em um governo democrático, que tenha também preocupações sociais. Assim, dois elementos são, sem dúvidas, fundamentais: a retomada do papel do Estado e a questão ambiental no cerne das tomadas de decisão. Estas duas questões devem ser, inevitavelmente, alinhadas a uma terceira: a soberania.

O investimento público pode ser direcionado, por exemplo, para retomar a política de “campeãs nacionais”. Algo que deve ser bem desenhado e, no cenário atual, voltado também para empresas que permitam a transição para uma economia de baixo carbono. Outra fronteira que pode ser expandida é o de projetos similares ao da Amazônia 4.0, iniciativa lançada pelo Instituto de Estudos Avançados da USP, que permite a geração de renda local, ao mesmo tempo em que estimula o desenvolvimento sustentável e o respeito à comunidade local. Um exemplo bem-sucedido é a produção de açaí em agrofloresta, mas outros insumos podem ser produzidos na localidade, como produtos farmacêuticos e cosméticos – que apresentam maior valor agregado que o agronegócio. Para além disso, o investimento público pode ser também direcionado para setores como o da saúde, que é uma cadeia altamente integrada, com grande potencial geração de emprego. Por fim, a despeito do “carro chefe” da Petrobras ser o petróleo, a estatal pode expandir também a produção em energias renováveis, como a solar e o investimento em hidrogênio, mais uma vez gerando emprego e renda para a população.

Em suma, há uma série de arranjos que podem alinhar a atuação do Estado à transição para uma economia mais verde, auxiliando na recuperação da credibilidade do Estado brasileiro diante dos demais países. Note-se, contudo, que os desenhos para preservação do meio ambiente fazem parte de um tópico que deve ser trabalhado localmente, sem subserviência a outros Estados. No cerne da retomada do papel do Estado brasileiro, está também a recuperação do emprego, da renda e da dignidade para a população, sem isto, não seria possível pensar em um projeto soberano, afinal, onde fica a soberania de um país que a própria população, inclusive cientistas, pensam em deixá-lo?

Cabe retomar breve artigo escrito em 2021 por Paulo Nogueira Batista Júnior. De acordo com o autor, o Brasil possui um papel de liderança global a ser exercido. Isto aconteceria com o Brasil ocupando um vácuo que, segundo a tese Nogueira, não é ocupado nem pelos EUA, nem por países europeus, nem pela China. De modo sumarizado, o Brasil seria, ao ter um projeto para ocupar esse vácuo, líder dos países em desenvolvimento, promotor de políticas de cooperação e lutaria pela mitigação de injustiças sociais. Nas palavras do autor: “o Brasil destina-se por sua própria história e formação a exercer um papel singular, a trazer uma mensagem de esperança, generosidade e união para o planeta inteiro”. Reconstruir este país, é preciso.

 

*Bruna Belasques, Kayque Ferraz e Vitor Hugo do Santos são Pesquisadores do Observatório de Política Externa Brasileira.

**O OPEB (Observatório de Política Externa Brasileira) é um núcleo de professores e estudantes de Relações Internacionais da UFABC que analisa de forma crítica a nova inserção internacional brasileira, a partir de 2019. Leia outras colunas.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo