Na semana passada, foi sancionada a Lei 14.297/22, que estabelece regras emergenciais de proteção a entregadores de aplicativo durante a pandemia. A legislação obriga as empresas a contratarem seguro contra acidentes, em benefício do entregador, durante o período de retirada e entrega de pedidos. Também estabelece assistência financeira aos entregadores que forem contaminados pela covid-19, além de outros cuidados específicos em relação à prevenção da doença. De acordo com a proposta aprovada no Congresso, as empresas deveriam garantir alimentação aos trabalhadores. Mas o presidente Jair Bolsonaro vetou esse e outros pontos. Os parlamentares têm até o início do próximo mês para apreciar esse veto.
Ainda assim, trata-se de uma primeira vitória importante da categoria, rumo a conquistas de direitos sociais. Durante a pandemia, os entregadores realizaram paralisações, greves e manifestações em defesa da vida e por melhores condições de trabalho.
Por outro lado, o setor de entregas cresceu enormemente nesse período de quase três anos desde a chegada da covid ao país, em março de 2020. Somente no primeiro ano de pandemia, o faturamento do Ifood, por exemplo, registrou salto de 234%. Porém, junto com o aumento da demanda, veio também a brutal exploração desses trabalhadores, que formam um retrato fiel da precarização do emprego no país.
Outra notícia que marcou o setor no início do ano envolve a Uber Eats. A empresa anunciou o fim do serviço de delivery de restaurantes. Coincidentemente o anúncio ocorreu um dia depois da sanção da lei que amplia direitos dos entregadores. A Uber Eats, contudo, afirma não haver relação entre um fato e outro. Alega que vai concentrar seus negócios nas entregas de compras de supermercados. Com isso, aumenta a concentração do setor – até então, o Ifood já detinha cerca de 70% do mercado de entrega de alimentação.
“Solução Flaskô”
Se o setor fosse “sólido”, a solução para a saída da Uber Eats seria ocupar a empresa, colocando-a sob controle dos próprios trabalhadores. Paulo Lima, o Galo, integrante dos Entregadores Antifascistas, foi quem cogitou a hipótese. Nesse sentido, ele citou o exemplo da Flaskô, empresa do setor plástico em Sumaré (SP), que é administrada pelos trabalhadores desde 2003.
“A Uber Eats teria que virar Flaskô. Mas a coisa não é mais sólida. Então a gente não tem fábrica para ocupar. Se tivesse, a gente ocupava”, disse Galo. Ele participou de uma live no canal da economista-chefe do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE), Juliane Furno. Em discussão, desafios para organizar a categoria, em meio ao avanço monopolista. “Como fazer a Flaskô desse setor? É a luta que a gente tem que travar para descobrir”, completou.
Entre a cooperativa e o sindicato
Sem respostas prontas, Galo classificou como idealista a proposta de criação de uma cooperativa de entregadores, com aplicativo próprio. Tal ideia, segundo ele, parte quase sempre de “acadêmicos”, “brancos” na maioria, que não conhecem, na prática, a realidade da categoria. Ele também afirmou que falta consciência de classe a parte de seus colegas, que enxergam o cooperativismo não como “ferramenta de luta contra a opressão”. Mas apenas como um captador de demandas.
“Os caras falam que a coisa é fácil. O que a gente faz, no futuro, quando os entregadores começarem a se voltar contra a própria cooperativa, se as coisas ficarem mais difíceis?”, explicou. “O cara entrou, por exemplo, ganhando R$ 3 mil reais. Mas, depois, passa a ganhar R$ 1.500. Ele vai dizer o quê? Que o Galo é corrupto, que está colocando metade do salário dele no bolso”.
Outro risco é que a própria cooperativa poderia virar uma “presa fácil” dos aplicativos, muito mais poderosos em termos financeiros. “O que vão dizer no dia em que a cooperativa estiver mal das pernas, e as assembleias girarem em torno da solução de deixar os aplicativos contratarem os nossos serviços? A gente achou que organizou o trabalho para nós, mas acabamos organizando para o aplicativo”.
Para Galo, uma das alternativas seria combinar o cooperativismo com o sindicalismo, “e tirar uma coisa nova daí”. “Uma coisa que tanto capte a demanda – porque o trabalho não é mais ‘sólido’ e a gente precisa trazer essa solidez de volta. E, além disso, que também organize o trabalho”.
Políticas públicas
Para Juliane Furno, uma iniciativa como essa precisaria contar com a participação do Estado. Com políticas públicas de assistência técnica e de crédito, como forma de enfrentar as grandes empresas do setor. Sem isso, a proposta do cooperativismo acaba esbarrando no discurso liberal. “Se assemelha, por exemplo, ao ideário do partido Novo”, afirmou. “Monte a sua própria empresa, seja sua própria empresa, faça o seu próprio negócio”, provocou.
Por outro lado, ela também destacou que o movimento sindical tem dificuldades em lidar com as demandas dos entregadores. “É uma categoria jovem, majoritariamente negra, que não tem o mesmo nível de qualificação do operariado fabril, com condições de trabalho muito distintas”. No entanto, é na luta por direitos que ela aposta suas fichas.
“É a luta por essas melhoria nas condições de trabalho que mobiliza e integra as pessoas. Inclusive para tomar consciência dos limites disso”. Para ela, o principal desafio é como transformar essa luta por demandas imediatas e concretas em consciência política.