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Militância e oratória

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A oratória surge na experiência social humana como recurso a serviço da agregação das pessoas, da união pela sobrevivência - Fotos por Mídia NINJA + Bruna Piazzi e Pedro Muniz
No mundo em que vivemos, há oratórias para quase tudo

A árvore, quando está sendo cortada,

observa com tristeza que o cabo do machado é de madeira.

(Sabedoria popular árabe)

A vida é uma luta. Lutas exigem ferramentas. A linguagem é cultura. A oratória é uma técnica. A oratória surge na experiência social humana como recurso a serviço da agregação das pessoas, da união pela sobrevivência e, também, para a solução de conflitos. A arte da eloquência, o domínio do discurso, a clareza de expressão, a força dos argumentos, a intensidade do compromisso são algumas de suas características.

Ao surgir, há muitas dezenas de milhares de anos atrás, contribuiu para a construção de coletivos estáveis em sociedades igualitárias. A oratória é uma forma de comunicação. Ela une a horda humana em sociedades de caçadores coletores, oferece coesão à tribo, que se organiza pelo parentesco, e precisa lutar contra grupos rivais e contra a penúria imposta pela dificuldade de domínio sobre a natureza. A oratória favorece à cooperação.

No mundo em que vivemos, há oratórias para quase tudo. Existem cursos de oratória para a formação de líderes religiosos, um tipo de discurso ultraespecializado, em que os brasileiros constituíram uma escola. Outros para vendas, por exemplo, oferecidos pelas grandes corporações. Há uma oratória destinada a executivos com o objetivo de motivar os funcionários e galvanizar a área em que atuam.

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Há uma oratória para o rádio, outra para a televisão. Há uma oratória para a educação e, dentro dela, diversas variantes, como a dos cursinhos de vestibular, cada uma com seus vieses. Há o discurso acadêmico, por exemplo, não poucas vezes, um pouco hermético.

Cada época e cada classe produzem seus oradores. O discurso oral é uma forma de expressão que tem, também, um caráter de classe. O orador da escola burguesa clássica foi o bacharel de Direito, com os divertidos vícios da citações em latim. Os tribunos populares criaram no Brasil outra escola de oratória, sobretudo nos anos oitenta, o discurso de combate para a ação.

A especificidade da oratória socialista está na concepção de que a oratória é um trabalho coletivo. Ao contrário da política burguesa, que forma lideranças individuais carreiristas, portanto, caudilhescas, a política das organizações de trabalhadores é uma atividade coletiva

Quem intervém não fala só por si mesmo. Grandes oradores são os porta-vozes de um grupo em que estão integrados.

Nas equipes estão também os que têm mais talento para a solução de problemas, os que pesquisam e estudam um tema, os que articulam e organizam, os que escrevem e, talvez, mais importante estão aqueles que são capazes de unir os militantes e têm a capacidade da agregação. Portanto, as habilidades necessárias na luta sindical, social e política são muitas e variadas, não só a eloquência. 

A oratória para a luta popular, para a mobilização dos trabalhadores e da juventude é o desenvolvimento de uma das habilidades para formação de lideranças. A oratória não é a habilidade mais importante. O melhor orador não é, necessariamente, a melhor liderança.

Cada época introduz transformações na oratória. A oratória política, uma das mais antigas, sofre forte mudança com a introdução do rádio, pois os discursos deixam de ser presenciais. Falar presencialmente é muito diferente do que falar no rádio, na televisão ou em uma Live na internet.

A oratória militante contraria os estereótipos da política burguesa. Não devemos escolher para porta-vozes das lutas sindicais, populares e políticas aqueles que terão a melhor imagem em uma tela. Não acreditamos que o rosto mais fotogênico seja o melhor para a representação dos interesses dos trabalhadores. Nossos critérios são diferentes da vulgaridade da política institucional eleitoral.

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Só merecem ser escolhidos como nossos porta-vozes aqueles que, na luta de classes, já passaram por provas de dedicação, compromisso, coragem, e inteligência. Por isso, apostamos que resistirão ao assédio que será feito sobre eles para abandonar a defesa dos interesses dos oprimidos. Esse perigo é muito real e não deve ser subestimado.

A oratória militante é outra oratória. Para atingir a ampla maioria do povo brasileiro, a oratória comercial, gerencial, a do direito, todas elas são ineficazes. A oratória militante quer despertar o que há de melhor nas pessoas, não o que há de mais mesquinho, de mais egoísta, de mais alienado.

Está a serviço da luta contra a dominação política burguesa, quer estimular a união e coesão dos explorados para que se organizem de forma independente, elevar o seu nível de consciência, incendiar sua imaginação, inflar a sua confiança, para que acreditem que a transformação da sociedade é possível. É uma oratória pedagógica porque tem um papel educativo.

Uma oratória militante é uma entrega, uma doação. Um discurso militante tem como objetivo apresentar de forma clara e contundente tudo aquilo que pulsa na mente de milhares, mas não encontrou ainda expressão consciente 

Com a oratória queremos despertar, em cada um de nós, o que há de mais humano. Aquilo que é quase instintivo, que, às vezes, não conseguimos expressar com palavras, mas existe dentro de todo coração e mente saudável: a sede por justiça, a aspiração à igualdade social e o apetite pela liberdade. Em cada militante há esse desejo de que deve haver mais liberdade e mais igualdade.

Ambas são indivisíveis. Porque não é possível a liberdade entre desiguais. Para um lutador popular, a bandeira da igualdade e da liberdade é a causa mais justa, mais elevada do tempo que nos coube viver, e o seu nome é socialismo.

A oratória é uma técnica, somente um recurso, habilidade, destreza e pode ser pervertida. Portanto, como aprendemos na escola da vida, há uma dimensão moral na oratória. Técnicas têm de ser usadas com responsabilidade. Devem servir uma causa justa. Não podem ser aproveitadas, demagogicamente, para defender interesses mesquinhos, pessoais, egoístas.

Portanto, é realmente importante saber sempre a serviço de quais interesses se luta. A vida exige de nós honestidade. Quem a perde não merece confiança. Quando alguém se esquece disso, quando o uso da oratória se transforma em um fim em si mesmo para manter posições de poder, de cargos de prestígio, a tendência é o embrutecimento. Quem age assim, degenera e se desumaniza.

Não somos instrumentos a serviço da oratória. Somos, cada um de nós, nosso corpo, nossa vontade, nossa voz, nossa mente, nossa emoção, militantes a serviço de uma causa que é muito mais grandiosa do que nós. Quando alguém toma a palavra e as luzes estão focadas, quando pega o microfone e outros ouvindo, a responsabilidade é imensa. Com o domínio da oratória vêm as responsabilidades da liderança. São indivisíveis.

O domínio de uma técnica de oratória é uma forma de poder. Um poder de influenciar os outros, de vencer na luta de ideias. Quando um conhecimento é usado a serviço de uma causa miserável, ele se transforma no contrário do que deveria ser. Deixa de ter uma função emancipadora, e passa a ter um papel alienador, opressor. 

O maior perigo da oratória é a vaidade. Mais do que em outras tarefas, a oratória permite a exposição pública, o que a torna, potencialmente, muito perigosa. Expor-se, publicamente, permite um grau de reconhecimento, aprovação, legitimação que parece intransferível, ou até insubstituível, e alimentar ilusões. Pode incendiar egos, alimentar invejas, rivalidades desnecessárias e conflitos destrutivos. Acontece que somos todos imperfeitos e a vaidade é uma armadilha poderosa, embora, essencialmente, infantil.

A vaidade não deve ser subestimada. Algum grau de autoestima, orgulho próprio e altivez são normais. Mas a arrogância, presunção e soberba, não. Devem ser contrabalançadas pela pressão do trabalho de equipe. Militantes socialistas devem ser educados na percepção de que os aplausos que recebem não são, somente, seus. São aplausos para as ideias que defende, para a organização que representa.

Na luta política e social, na esfera dos sindicatos, dos movimentos sociais e dos partidos, toda militância deve ser um trabalho de equipe com divisão de tarefas. Mesmo que o camarada seja escolhido como porta-voz de um coletivo, em determinado momento, isso não o autoriza a concluir que seja o “rei da cocada preta”. Quem perde o sentido da humildade é alguém imaturo, sem sentido das proporções, “sem noção”. O personalismo, o estrelismo, o individualismo é ridículo. Entre o triste e o sinistro. Militantes devem ser, na dimensão pessoal, discretos sobre si mesmos. Se com responsabilidades, mais ainda.

 

*Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSOL e autor de O Martelo da história, entre outros livros. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vinícius Segalla