Pela primeira vez na última década, todos os organismos multilaterais prognosticam a desaceleração da economia mundial para dois anos consecutivos. A Organização das Nações Unidas (ONU) prevê um crescimento da economia global de 4% para o final de 2022 e de 3,5% para 2023 - números inferiores aos 5,5% de incremento econômico registrado no final de 2021. "Um crescimento frágil e desigual", classificou o secretário geral do organismo, Antonio Guterres.
Da mesma forma, a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) indicou no seu balanço anual de 2021 que a região cresceu 6,2% no último ano, mas a expectativa para 2022 cai para 2,1%.
Além da pandemia de covid-19, o desgaste do sistema econômico mundial poderia ser outro fator para entender o estancamento.
"É um crescimento que em termos de economia real é inócuo, é inexpressivo. Não teve um impacto na economia real, na demanda, no consumo e menos ainda no emprego", analisa o economista peruano Eduardo Recoba Martínez.
Somente 1/3 dos países da região conseguiram recuperar seu Produto Interno Bruto (PIB) a patamares anteriores à pandemia. Além disso, cerca de 30% dos postos de trabalho encerrados em 2020 ainda não foram recuperados, segundo o informe da Cepal.
Em toda a região, 11,5% das mulheres latino-americanas estão desempregadas, entre os homens a taxa de desemprego é de 8%. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), nos últimos três anos foram perdidos 52 milhões de postos de trabalho e a projeção para o final de 2022 é de que existam 207 milhões de pessoas desocupadas em todo o planeta.
No topo do ranking da Cepal está o Peru com um índice de 13,5% de incremento da atividade econômica em 2021. Apesar dos índices gerais positivos, cerca de 70% da população peruana economicamente ativa está empregada no setor informal.
"Foi um crescimento totalmente assimétrico, baseado na desigualdade e nas assimetrias dos mercados, contando com governos que se apoiaram a um setor privado e um setor privado que se associou a governos através de mecanismos mercantilistas, com modelos de monopólios e oligopólios", critica Martínez.
Já o Brasil, a maior economia latino-americana, teve um crescimento econômico de 4,7% ao final de 2021, valor abaixo da média regional.
No outro extremo estaria a Venezuela, que segundo a Cepal teve uma retração de 3,1% da sua economia em 2021, apesar das cifras oficiais apresentadas pelo presidente Nicolás Maduro indicarem um crescimento de 4%.
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Para o economista venezuelano Alejandro del Búfalo, o panorama econômico do país exige uma análise mais complexa, que não envolve apenas índices de aumento do PIB.
"Vários acadêmicos colocam em discussão o uso de dados de crescimento econômico para avaliar uma gestão de governo ou do êxito de alguma política, porque obviamente implica numa concepção de vida", critica.
Falência do modelo neoliberal?
As cifras confirmam tendências apontadas pela teoria marxista sobre o capitalismo na sua fase imperialista: o aumento da concentração de capitais, formação de monopólios e a reprimarização das economias dependentes, como é o caso da América Latina. Os setores que mais cresceram em 2021, segundo o balanço da Cepal, estão vinculados ao extrativismo e ao agronegócio. A produção agrícola mais expressiva, no entanto, não representou diminuição nos preços dos produtos e mais equidade na distribuição dos alimentos.
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Por outro lado, a região continua num processo de constante desindustrialização. No caso do Brasil, a indústria de transformação deixou de representar 24,5% do PIB, em 1985, para aportar apenas 11,7% em 2021, segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi).
Para os especialistas, o panorama também representa a crise das teses neoliberais, que ganharam força a partir dos anos 1980.
"Você não consegue reverter completamente uma estratégia de enfraquecimento das nossas economias que iniciou nos anos 1980, 1990. Não há um efeito imediato, até porque esses governos progressistas também enfrentaram os desafios de uma economia cada vez mais internacionalizada e pautada pelos interesses das grandes transnacionais. São elas que dominam as economias na América Latina", comenta a pesquisadora do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Marilane Teixeira.
Outra tendência observada pelos economistas é que, com o avanço da mecanização no campo, a internet 5G e as novas tecnologias incorporadas pelas "economias verdes", as grandes potências tendem a interiorizar novamente processos de industrialização nos seus países e explorar a América Latina e Caribe como grande fonte de recursos naturais e commodities.
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"Além de agregar mais valor, é mais conveniente para esses grandes grupos voltar a produzir nos seus países, ao invés de transnacionalizar os processos", comenta Teixeira.
Enquanto a fome bateu recorde dos últimos 15 anos, os 2,7 mil bilionários existentes em todo o mundo conseguiram dobrar suas fortunas durante a pandemia, aponta relatório da Oxfam.
A secretária executiva da Cepal, Alicia Bárcenas defende que para mudar o cenário é necessário implementar novas políticas tributárias na região. "Devemos superar a cultura do privilégio que fomenta a evasão, que alcança 6,1% do PIB regional", afirmou Bárcenas.
En #ALC tenemos muchas tareas que hacer. Una de ellas es vencer esta cultura del privilegio que fomenta la evasión, que alcanza al 6,1% del PIB. Tenemos que ir hacia una nueva generación de políticas tributarias que mejoren el nivel de recaudación y su composición: @aliciabarcena pic.twitter.com/fMUPGsFZHy
— CEPAL (@cepal_onu) January 19, 2022
Somente em 2021, os Estados perderam cerca de US$ 325 bilhões pela evasão fiscal em 2021, de acordo com a Cepal.
"É fundamental a gente restabelecer uma aliança estratégica da América Latina para pensar um projeto de desenvolvimento que se sustente da sinergia que pode ser criada entre os nossos países, que têm uma capacidade enorme de produção de tecnologia e também de trocas", diz Marilane Teixeira.
Edição: Thales Schmidt