Há mais de 10 anos no topo da lista como o país que mais mata pessoas trans no mundo, o Brasil apenas agora, por causa do reality show Big Brother Brasil (BBB), da Rede Globo, parece se dar conta da dimensão dessa violência. Fenômeno que não é apenas físico: está desde a invisibilidade desses corpos, colocados à margem de espaços sociais, até na reprodução de preconceitos velados.
Decisiva para o debate é a participação da cantora e atriz Linn da Quebrada no programa. Em menos de uma semana de exibição, a multiartista foi vítima de diversos comentários transfóbicos disparados por alguns colegas de confinamento. Alguns deles mais de uma vez erraram a forma de se referir a ela.
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No último dia 23, Linn, que identifica a si mesma como pessoa travesti, precisou explicar a origem de ter tatuado a palavra “Ela”, acima da sobrancelha, para ressaltar que deveria ser tratada com pronomes femininos.
“Eu fiz essa tatuagem, na verdade, por causa da minha mãe. Porque no começo da minha transição, a minha mãe ainda errava e me tratava no pronome masculino. E eu falei: ‘mãe, vou tatuar ‘ela’ aqui na minha testa que é pra ver se a senhora não erra. E acho que também assim é uma indicação para todas as outras pessoas. Então ficou na dúvida? Lê, e daí vocês lembram que eu quero ser tratada nos pronomes femininos”, destacou.
Poder da representatividade
O assunto ganhou importância e público. Muito embora ao mesmo tempo revele a opressão de uma sociedade que resiste a abrir os olhos para a violência de gênero, também é uma oportunidade de jogar luz para a realidade e garantir a representatividade de pessoas travestis e transexuais em uma rede nacional.
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É o que pondera a presidenta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), Symmy Larrat. Em meio às celebrações pelo Dia Nacional da Visibilidade Trans, neste 29 de janeiro, a ativista foi entrevistada no programa Bom Para Todos, da TVT. Em sua participação, ela comentou a presença de Linn no BBB como um passo importante para a sociedade se educar para a diversidade. O objetivo, de acordo com Symmy, é que as situações de transfobia enfrentadas pela travesti no jogo passem a ser cada vez menos frequentes dentro e fora do programa.
“É inegável a importância de quando a gente se enxerga em programas como esse que têm grande visibilidade e que pautam o debate do dia a dia de brasileiros. Ter figuras como a Linn é praticamente forçar com que a família brasileira, seja ela ‘tradicional’ ou as configurações, que a sociedade brasileira debata sobre isso. E quando ela chega e se reconhece como travesti, ela traz uma identidade que é muito invisibilizada”, observa.
Contra a transfobia
“A travesti é gênero feminino, tal qual as mulheres. Mas esse conceito ‘mulher’ não a abarca, porque ele é socialmente construído. Ela (Linn) coloca em xeque essa binaridade de gênero. E é também uma identidade política, porque vai dizer ‘vocês acham que travesti é isso, mas travesti é muito mais do que isso. É algo positivo, que se tem orgulho, a palavra, que era usada para ofender, foi ressignificada. Eu sempre digo que o conceito de travesti não cabe no dicionário porque aquelas duas e três linhas não vão dar conta do que é a ‘travestilidade'”, completa a presidenta da ABGLT.
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Na luta contra a transfobia, Simmy ressalta a importância de a população também pontuar a falta de pessoas transgêneras na comparação com pessoas cisgêneras – aquelas em que o gênero corresponde ao sexo biológico associado ao nascimento. Em 22 edições do programa da TV Globo, Linn da Quebrada é a segunda participante trans em toda a história do programa. A primeira, há 11 anos, foi Ariana Arantes.
Humanização
Pedagoga e mestranda em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Maria Clara Araújo dos Passos avalia a entrada de Linn da Quebrada no BBB22 como uma “oportunidade pedagógica” do Brasil ver uma travesti “em sua complexidade humana”. Em artigo publicado pela plataforma PerifaConnection, reproduzido no jornal Folha de S. Paulo, ela lembra que o programa tem diversas problemáticas.
Entre elas, a de esvaziar pautas sociais. Mas defende que a escolha de Linn no grupo “se inscreve em um esforço coletivo das travestis e mulheres transexuais brasileiras em disputar o imaginário”.
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“Sendo determinada, corajosa, mas também medrosa, contraditória e reivindicando o seu direito ao erro, como ela mesma colocou. Sendo assim, com Linn da Quebrada no BBB, o Brasil se vê diante de uma oportunidade pedagógica”, pontua Maria Clara. “Que a passagem de Linn faça o Brasil se enxergar.”