Em 2002, a luta era pelo fim do neoliberalismo; agora, o que está em jogo é a democracia
O ano de 2022 não repete 2002.
Naquele ano, foi derrotado um projeto de aprofundamento neoliberal levado a termo pelo tucano Fernando Henrique Cardoso em dois mandatos consecutivos.
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, à Presidência da República interrompeu um período de oito anos da história brasileira em que houve uma convergência única da classe dominante brasileira em torno de um projeto de poder, executado sob hegemonia de uma nova burguesia financeira (novíssima, criada e financiada por meio de uma apropriação sofisticada de recursos abundantes do setor público liberados pelas privatizações e por uma política monetária altamente favorável ao capital especulativo).
O projeto neoliberal brasileiro se fortaleceu em perfeita sintonia com o capital financeiro internacional, que colocava o Brasil de joelhos a cada crise internacional.
A “modernização” do capitalismo brasileiro proposto por esse bloco de poder teve também uma adesão orgânica da máquina de governo e das instituições de Estado. Consolidou-se confortavelmente no Legislativo, com a adequação de seus métodos às exigências pragmáticas dos partidos tradicionais e do chamado “baixo clero” parlamentar.
Houve também uma convergência ímpar com o Judiciário, que deu aos governos do PSDB os instrumentos necessários para empreender uma política radical de privatizações, desnacionalização da economia e redução de direitos ampliados pela Constituição de 1988 – além de decisões pontuais em matéria partidária e eleitoral, sempre favoráveis ao bloco no poder. O chamado “aparelho ideológico de Estado” era tucano, de fato. Sem fissuras.
O preço que o país pagou por essa convergência ideológica foi alto. Terminado o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, o país estava quebrado e a renda brutalmente concentrada. Fome, desemprego, recessão e inflação trouxeram ao poder um partido, o PT, e um presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, a quem esse aparelho ideológico era hostil.
Bolsonaro foi a última peça de um jogo de poder que vitimou a democracia
A abundância de emprego e os investimentos sociais deram sustentação popular a Lula, em dois mandatos, e a Dilma Rousseff, em um – mas o fato é que a hegemonia eleitoral não se converteu em uma conquista dos aparelhos ideológicos de Estado. O bloco ideológico que sustentou o governo anterior continuou a controlar os meios de comunicação e o Judiciário.
Além disso, manteve o monopólio dos instrumentos de política monetária, que atuaram em todo o período como sabotadores de políticas anticíclicas e industriais e blindaram o poderoso bloco financeiro, nacional e internacional, contra qualquer tentativa de destituí-lo da posição hegemônica perante as demais frações da sua classe. Abrigou também, com satisfação, conspirações internas e exógenas.
A luta pelo poder desde então empreendida pelos derrotados de 2002 foi pesada. Teve até espionagem externa e treinamento para uma “guerra híbrida” que envolveu Judiciário, militares e setores econômicos e resultou em perdas enormes para a democracia. O Brasil que vai para as eleições de outubro não foi arrasado apenas pelo bolsonarismo. Bolsonaro foi a última peça de um jogo de poder que vitimou a democracia. E é a democracia que agora está em jogo.
O processo eleitoral de 2022 acontece sobre os despojos desta guerra insana, mas é um erro imaginar que a retomada da democracia se dará meramente por vingança contra os artífices da luta implacável contra a esquerda.
A máquina de propaganda instalada entre 2003 e 2016 contra Lula, o PT e as esquerdas em geral, reconheçamos, levou de roldão uma parcela da opinião pública que, mesmo contra seus interesses de classe, tornou-se arraigadamente antipetista. Manipulou também com habilidade o senso comum, incutindo “valores” alheios ao bom senso e o ódio como expressão de luta política.
Se tem uma coisa que a eleição de 2002 demonstrou é que força eleitoral não se traduz automaticamente em hegemonia
Não foi a extrema-direita que inventou essa máquina de mentiras, mas soube usá-la para eleger um capitão sem qualquer expressão política e desalojar do poder as classes dominantes que estavam brincando de conspirar às sombras. É lógico que Bolsonaro governa para as elites econômicas, mas é evidente que os lídimos representantes dessas elites foram desalojados do poder político.
O modus operandi fascista não favorece a representação direta das classes hegemônicas economicamente: as políticas transitam em espaços públicos dominados por um líder sem vinculação orgânica com estas elites, e onde rivalizam interesses públicos e privados. A coesão é mantida por coação: dela se encarregam as forças militares e policiais e as milícias civis, além das milícias digitais. As dissensões não são toleradas.
Sem espaço no aparelho de Estado, onde navegava antes, as elites foram desalojadas. A corrosão democrática e a vitória de um projeto fascista, em 2018, excluiu do cenário político os espaços partidários onde os consensos entre as frações da classe dominante eram definidos – o PSDB e o PFL.
A situação pré-eleitoral expõe as fraturas no bloco dominante, mas isso está longe de representar um caminho livre para um projeto em que a esquerda democrática possa nadar de braçadas. Se tem uma coisa que a eleição de 2002 demonstrou, e é bom que se aprenda direito, é que força eleitoral não se traduz automaticamente em hegemonia. Voto é uma coisa. Hegemonia é outra.
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Rejeitar o apoio de frações da classe dominante que não embarcaram na conspiração da “terceira via”, nem compactuam com Bolsonaro, é uma das opções à mesa. Uma chapa pura das esquerdas pode afastar o perigo de abrigar na eleição um ovo da serpente que vitime no futuro o presidente eleito em outubro.
O grande risco é que essa estratégia pode forçar a reaglutinação das frações de poder hoje dissidentes do bolsonarismo. O capitão não tem votos para se eleger, mas tem o monopólio do aparelho de coação: as polícias, as Forças Armadas e o controle sobre uma milícia civil que foi fortemente armada durante este governo.
As esquerdas democráticas, pelo voto, voltam teoricamente à Presidência com Lula, no primeiro ou no segundo turno. A dúvida é se terão, sozinhas, musculatura para barrar um projeto de poder autoritário – é isso que está em questão, dada a inviabilidade eleitoral de Bolsonaro e de um candidato alternativo tirado da cartola das elites econômicas e financeiras.
Após quase duas décadas resistindo a conspirações e golpes permanentes nas instituições democráticas, a esquerda mostrou que sua capacidade de mobilização e sua inserção social só são efetivas no período eleitoral: é pequeno seu poder de mobilização permanente de suas bases sociais.
O grande nó, e o que dificulta as decisões eleitorais da esquerda nas eleições de outubro, é que a luta política de hoje acontece em terreno movediço. Não é uma luta política que ocorre em uma arena democrática, a exemplo do que aconteceu em 2002.
De novo, o que está em jogo é a reconquista democrática. Começar de novo a tecer a liberdade e a restituir o poder do voto popular. Esta é uma realidade muito mais dura e muito mais amarga do que aquela que a esquerda teve de enfrentar em 2002.
Edição: Monique Santos