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Lucélia Santos: "Espero que o Lula ganhe no primeiro turno, vamos lavar a bandeira do Brasil"

Atriz completa 50 anos de uma carreira marcada por sucessos e comemora com peça sobre legado de Chico Mendes

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Neste ano, a atriz vai apresentar espetáculo teatral sobre a vida de Chico Mendes. Obra faz parte das comemorações de 50 anos de carreira de Lucélia Santos
Neste ano, a atriz vai apresentar espetáculo teatral sobre a vida de Chico Mendes. Obra faz parte das comemorações de 50 anos de carreira de Lucélia Santos - Gleilson Miranda/Secom
Chico Mendes foi a maior liderança socioambiental do Brasil, não surgiu ninguém no lugar dele

Lucélia Santos tem uma carreira marcada por sucessos, no Brasil e no mundo. São cerca de 15 novelas e quase 30 filmes - sem contar as minisséries, os especiais de TV e as peças teatrais - que marcaram gerações de telespectadores, em uma época onde o entretenimento era determinado, quase exclusivamente, pelas produções televisivas. 
 
Em 2022, Santos comemora 50 anos de carreira e segue, segundo ela, “passional e visceral”. Estão no roteiro das festividades uma exposição, um livro de fotos e uma peça teatral sobre uma das principais áreas de atuação da atriz, a causa socioambiental. A montagem aborda a vida do líder extrativista Chico Mendes


 


A obra é baseada em uma longa entrevista que a atriz fez com Mendes no final da década de 1980, antes de seu assassinato em Xapuri, no Acre. 
 
“[Mendes] é uma liderança dos povos da floresta, um extrativista, um seringueiro, um homem que aprendeu a ler com 19 anos de idade e foi uma liderança que apresentou ao Brasil um projeto de reforma agrária para a Amazônia, que é o melhor até hoje”, explica Lucélia Santos.
 
“E a melhor maneira de manter viva essa lembrança é usando como instrumento o meu corpo e o meu trabalho de atriz, a minha voz”, completa. De acordo com Santos, esse material nunca foi revelado a ninguém.
 
A atriz, convidada desta semana no BDF Entrevista, fala ainda sobre o estrondoso sucesso de Escrava Isaura, uma das mais prestigiadas telenovelas do mundo, sobre a televisão brasileira, o fenômeno das redes sociais e as eleições presidenciais deste ano.
 
Eu espero que o Lula ganhe no primeiro turno, que a gente consiga dar uma girada nessa bandeira, botar ela no tanque, dar uma boa lavada de todo o emporcalhamento que ela sofreu. E eu espero que isso aconteça de uma forma muito forte para o Brasil, porque eu ainda acredito no Brasil.”
 
Confira a entrevista na íntegra:
 
Brasil de Fato: Agora em 2022, você completa 50 anos de uma carreira marcada por sucessos na TV, no cinema, com muitos prêmios. Você tem um momento que é o mais marcante dessa trajetória?
 
Lucélia Santos: Não tem um momento assim, eu fui meio que me enrolando com a minha própria carreira ao longo da minha vida, porque eu sempre trabalhei muito, e não só em termos quantitativos, mas em termos de intensidade. Eu sempre fui muito passional e visceral, entregue aos trabalhos que fiz ao longo da minha carreira, tanto no cinema quanto no teatro, assim como na própria televisão. 
 
Eu sempre fui uma atriz entregue ao trabalho, ao projeto, ao personagem, à produção, então isso é uma característica minha, como atriz e como artista. Como mulher, eu não sou uma pessoa morna, eu sou uma pessoa inteira nas coisas que faço, então isso demanda uma enorme energia. 
 
É um tanto cansativo ser uma pessoa como eu sou, porque as coisas nunca são assim, num ritmo desacelerado. Eu estou sempre com o pé no acelerador, a mil por hora, mas a minha carreira foi bastante interessante também, por esse aspecto da energia.
 
E agora, aproveitando esses 50 anos de carreira, você tem algumas comemorações programadas. Quais são esses projetos?
 
Então, tem um projeto muito bonito, que está sendo administrado pelo meu assessor, o Alex Bartelle, de reunir um material, ou ao menos parte do material da minha carreira profissional, em uma exposição fotográfica, onde eu possa mostrar personagens desses 50 anos. Tem muito personagem, tem fotos muito boas.
 
Da mesma forma, terá a edição de um livro de foto, com os melhores momentos, os melhores personagens, é mais ou menos a mesma curadoria, ou seja, só muda a quantidade de fotos. Isso deverá ser lançado também na China. 
 
Também vou estrear um espetáculo sobre Chico Mendes, que é um projeto que eu já venho acalentando há alguns anos, que é mostrar um pouco para os brasileiros e brasileiras, especialmente as pessoas mais jovens, quem foi Chico Mendes. Porque você sabe que é muito difícil manter uma memória saudável no Brasil, quase não existe esse compromisso. 
 
O Chico Mendes, sobretudo neste momento político, de política socioambiental que nós estamos atravessando, que é perverso, é fundamental que se traga à luz do dia todos os dias o personagem dele que foi, sem qualquer dúvida, a maior liderança socioambiental do Brasil. Não surgiu ninguém no lugar de Chico Mendes. 
 
Uma liderança dos povos da floresta, um extrativista, um seringueiro, um homem que aprendeu a ler com 19 anos de idade e foi uma liderança que apresentou ao Brasil um projeto de reforma agrária para a Amazônia, que é o melhor até hoje. Se esse projeto tivesse sido seguido, não estaríamos vivendo a tragédia de destruição da Amazônia que nós estamos passando. 
 
E a melhor maneira de fazer isso é usando como instrumento o meu corpo e o meu trabalho de atriz, a minha voz. Eu também tenho uma inserção política nessa história, eu despenquei em Rio Branco, no Acre, em Xapuri, em 1988, no auge do conflito latifundiário que acabou levando à morte de Chico Mendes. Eu trabalhei com o Chico nesse projeto e fiquei com umas fitas guardadas de uma longa entrevista que fiz com ele.
 
Eu nunca revelei esse material a ninguém, estava guardado carinhosamente. É um material preciosíssimo e nós decidimos construir, estruturar a peça, a partir desse material, através da própria fala, contextualizado por um documentário narrativo.
 
Você acha que a dramaturgia deve estar sempre a serviço das questões sociais e políticas? 
 
Eu acho que a dramaturgia tem que ser livre, absolutamente livre de qualquer amarração ideológica, seja no campo da esquerda, da direita ou de gênero, porque senão vira uma espécie de censura. Eu tenho um pouco de preocupação com relação a isso, que hoje é tão enfatizado, que é o politicamente correto. Isso não pode virar um aprisionamento da criatividade. 

Se não há um opressor e um oprimido, não há conflito, não há o trágico, não há dramaturgia

O que me chamou a atenção para isso foi o Chico Buarque dizer que vai parar de executar ou de cantar uma canção que ele escreveu para Nara Leão anos atrás, que eu, particularmente, adoro, que é "Com Açúcar, Com Afeto". É das canções mais lindas que o Chico escreveu e criou, melodicamente ela é perfeita.
 
Se for por esse princípio - as feministas reclamam que a personagem citada na canção é uma oprimida - você acaba com qualquer possibilidade de dramaturgia. Você acaba com o princípio da tragédia, você não pode mais escrever conflitos. Se não há um opressor e um oprimido, não há conflito, não há o trágico, não há dramaturgia.
 
Portanto, a dramaturgia, a arte, têm que ser livres, você tem que criar as várias facetas de uma discussão, de uma ideia. O conceito de vai para lá ou vem para cá fica a cargo do diretor, do autor e do próprio espectador. Você não pode amarrar tudo, senão vai virar uma estupidez, uma coisa de zumbis. 
 
As pessoas vão, cada vez mais, ter uma única direção, ser unidirecionadas, o que já é um pouco o que está acontecendo com as redes sociais.
 
A rede social possibilitou que várias vozes, que nunca seriam ouvidas pelos meios tradicionais, pela imprensa, ou por quem quer que seja, tivessem espaço. E no meio disso tudo há um conflito sobre limites, ou mesmo se não há limites. Como é que você vê isso? 
 
Há a questão social, a questão de empatia e de direito, o direito à liberdade de expressão é sagrado e deveria ser instrumentalizado por todos, tem que ser democrático ao extremo. Todas as pessoas e todas as causas têm que ser democratizadas, tem que se expressar da maneira mais ampla possível. Esse é o meu pensamento. 
 
Dentro disso, há várias observações a serem feitas. Por que uma parcela da sociedade não tinha tanta voz quanto tem agora, por conta das redes sociais? Porque o Brasil é muito conservador. A imprensa brasileira sempre pertenceu e continua pertencendo aos conservadores. A mentalidade predominante da imprensa brasileira é de um conservadorismo inquestionável, por isso é que dentro da imprensa normal, “comum”, a imprensa majoritária, a imprensa aberta, os meios de comunicação abertos, que atingem as massas, a população brasileira, são conservadoras ao extremo.
 
Isso só vai ser mudado quando a base da sociedade mudar. Aí eu vou te falar alguma coisa sobre o Gandhi, que dizia e eu repito sempre, que quando você pega uma pessoa que foi eleita democraticamente, o cabeça pode ser um monstro - como o monstro que nós temos hoje. Se você fizer um corte longitudinal, um corte vertical, você deverá encontrar esse monstro na base da sociedade. 
 
Ele representa, ele é a cara da sociedade que o elegeu. Então, o que nós temos que pensar é que o Brasil, hoje, é a cara desse monstro nojento. Não foi à toa que ele chegou ao poder. Há uma razão social de base estrutural da pirâmide que gerou condições, amadureceu condições para que isso ocorresse. 
 
A gente pode ter várias lives, nós dois, analisando um por um, todos os aspectos, sobretudo o que nos diz respeito e que é o nosso tema discutido aqui agora, que é o da comunicação social. Como é que esse cara fez a comunicação dele? Como isso pode acontecer? 
 
Voltando ao pensamento de que a imprensa conservadora o apoiou, porque quem pariu o monstro foi um outro monstro, que é apoiado pelo que há de mais conservador, inclusive internacionalmente, que é o [Sergio] Moro. E eles não estão exterminados, estão aí com voz.

O cancelamento, o julgamento permanente de tudo o que se diz nas redes sociais é o exercício do ego poderosíssimo

Eu estou falando todas essas coisas para chegar lá nas redes sociais. Eu acho que as redes sociais são também uma expressão legítima disso. Ali dentro das redes sociais, o céu é o limite e o debate é raso, você não encontra qualquer nível de profundidade nas redes sociais. 
 
É aí que entra a questão do empoderamento, porque essa ideia de empoderamento é uma ideia que vem do ego. Não existe nada para além do ego das pessoas em exercício nas redes sociais. O alimento fundamental das redes sociais é o ego humano. O cancelamento, o julgamento permanente de tudo o que se diz nas redes sociais é o exercício do ego poderosíssimo. 
 
A própria ideia de empoderamento é egóica, o cancelamento é egóico, o julgamento é egóico. E some-se a isso uma ideia fundamental: as redes sociais são rasas. O próprio conceito de navegação é andar na superfície. Quem navega, navega sobre [algo]. Não existe nenhum mergulho, nada pode ser tirado de fato deste universo. É a minha ideia. 
 
Às vezes, não é uma questão de geração, eu continuo querendo dizer às pessoas que leiam, que comparem ideias, que busquem autores, que busquem na literatura de fato, nas letras, o seu orientador. Isso está além do ego. 
 
Você começou na TV em 1976 e as coisas mudaram bastante desde então, o entretenimento mudou bastante. Como é que você tem visto a produção televisiva? Ela está tentando se adequar a esses novos públicos, à influência da internet, das redes?
 
Sim, a televisão mudou completamente. Ela era hegemônica. As novelas que eu fiz tinham uns 70 pontos de audiência, sabe o que é isso? É quase que unanimidade nacional. 

Eu não fiz nenhuma novela na Globo com menos de 60 pontos de média de audiência no dia a dia, e os capítulos de pico davam 70 pontos de audiência. Então eu sou dessa geração que pegou uma televisão muito poderosa. 
 
Hoje, isso seria semelhante às pessoas que têm milhões de seguidores nas redes sociais, como Felipe Neto ou Anitta, ou pessoas que têm milhões de seguidores. Se você pega a população do Brasil e faz uma conta do que significaria as novelas que eu fiz, em termos de audiência, eu teria milhões de seguidores e de espectadores. Por isso que a minha carreira na televisão ficou tão forte.
 
Porque hoje você pega personagens do dia a dia da dramaturgia, que está sendo vista, e você talvez não tenha personagens icônicos tão fortes quanto o que nós fizemos naqueles anos, na década de 1980 e 1990. 
 
A televisão mudou, hoje essa audiência está dissolvida, está fragmentada em milhões de canais e de formas de comunicação, e tudo está convergindo para os telefones espertos, os smartphones, ou seja, é um outro mundo, é uma outra tecnologia, é um outro momento, o que não significa que é bom ou ruim, que melhorou ou piorou. Significa que são sistemas de controle que mudaram.
 
Um dos teus maiores sucessos e que também foi a estreia na TV foi a novela Escrava Isaura, que te levou para o mundo, parou guerras, mobilizou lideranças populares pelo mundo todo. E um debate que se faz hoje é sobre uma certa romantização do papel dos brancos na abolição da escravatura. Se feita hoje, seria possível que essa novela tivesse tanta projeção quanto teve naquela época?
 
Absolutamente, sim. Aliás, talvez até mais, porque esse é um tema do debate atual. A Escrava Isaura tem elementos na sua construção dramatúrgica que mexe com todos os nervos, dos brancos, dos pretos, de mulatos, dos crioulos, dos pardos, de todas as etnias. 
 
Eu estou lendo um livro que eu recomendo a todos que leiam, porque é dos livros mais importantes que eu li na minha vida - ainda falta umas 300 páginas para acabar - é um livro de mil páginas chamado Um Defeito de Cor, de uma socióloga mineira que conta a insurreição dos pretos do século 19, na Bahia. 
 
Conta a própria história dela, como ela chegou ao Brasil no navio negreiro, aliás, eu acho que esse livro tinha que ser filmado, que é daquelas obras-primas, como eu sempre fico querendo assistir no cinema um dia à adaptação de Cem Anos de Solidão, que nunca filmaram. Eu também queria assistir no cinema, um dia, Um Defeito de Cor
 
Há obras que são fundamentais de serem realizadas, e eu acho que A Escrava Isaura está dentro desse pacote, por isso o sucesso. Onde e quando, em qualquer época que você remontar a peça construída pelo Bernardo Guimarães, você vai obter o sucesso e o impacto, porque ela parte sempre da premissa do opressor ou oprimido. 
 
E a discussão sobre a escravatura não tem esse romantismo dos brancos, porque no caso a escrava, por exemplo, que eu fazia, era branca. Ela era negra, mas nasceu branca, de pele branca, mas ela era negra e a condição de vida dela era ser escrava. Isso suscita um debate muito impressionante. 
 
Eu acho a novela muito boa, muito bem feita. Ia ser essa a justificativa do sucesso internacional dessa novela e está acima de qualquer coisa, porque até hoje, em toda a história do gênero teledramaturgia, é o que as pessoas mais lembram e reproduzem e comentam no mundo inteiro, não dito por mim, dito pela televisão americana.
 
Você sempre se posicionou politicamente, mesmo durante o período da ditadura, você estava lá, lutando pela questão da anistia. E hoje, de alguma maneira, você se mantém nesse front de batalha da questão ambiental, mas também da questão política que você não foge. O que você espera das eleições deste ano? 
 
Eu espero que o Lula ganhe no primeiro turno, que a gente consiga dar uma girada nessa bandeira, botar ela no tanque, dar uma boa lavada de todo o emporcalhamento que sofreu. E eu espero que isso aconteça de uma forma muito forte para o Brasil, porque eu ainda acredito no Brasil.
 
É um país que eu sempre amei de paixão, desde que eu era pequenininha eu tinha esse afeto pelo país, pela nação, pela ideia de coletivo, nação, língua, cultura brasileira, diferenças, de brilho. O Brasil é um país que brilha, é um país que tem várias cores. 
 
Nós somos um país negro, indígena. Nós somos um país com ritmo, com música, com gingado, com pimenta, com comida boa, um povo que é brilhante. O Brasil não pode ser sufocado. As pessoas não mereciam estar passando fome de novo. Eu falo disso e fico mesmo emocionada. 
 
As pessoas não mereciam estar passando por perrengue, de ficar correndo atrás de osso e de pele de galinha para por no meio de uma sopa para dar para a família. Nós já tínhamos superado essa porra dessa fase com os governos do Lula e do PT. 
 
Então assim, o que eu espero é que a gente retome a direção, o rumo da nação, e que dessa vez seja dado de uma forma radical todo o espaço aos povos indígenas, que sejam entregues e legalizadas todas as terras que pertencem aos povos indígenas e ao povo do campo, aos trabalhadores rurais.
 
Que haja, de fato, e definitivamente, uma reforma agrária. Isso é a luta da minha vida toda e isso é o que eu pretendo que aconteça no Brasil hoje. Que os indígenas, os extrativistas, os quilombolas, todos os povos da floresta, todos os povos que seguram a beleza do país e as árvores em pé, as faunas, a flora, os biomas, a vida sejam respeitados, porque eles são os que fazem com que os rios se mantenham saudáveis, com que a floresta se mantenha saudável.
 
Nós precisamos aprender a ouvir e a respeitar os povos da floresta. Então esse é o meu discurso, sempre foi o meu discurso há muitos anos e eu vou com isso até a minha morte. E eu espero que o Lula ganhe logo essa eleição, eu não quero nem o segundo turno.
 
E que a gente possa trabalhar e dar essa direção a quem merece, a quem precisa desse espaço urgentemente e que volte a ter fartura na mesa dos trabalhadores do povo brasileiro. É isso que eu quero. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho