O Vale Feira é uma iniciativa que reúne diversos setores do poder público e da sociedade civil
Por Rafael Oliveira*
A Cidade de Goiás é símbolo na luta camponesa pelo direito à terra. Localizado a cerca de 130 km da capital Goiânia, o município - que já carregou o nome de Vila Boa de Goiás e, até a década de 1930, era capital do estado -, foi o primeiro a implementar um assentamento em Goiás, em 1986.
Atualmente, o município conta com cerca de 740 famílias assentadas em 24 projetos de assentamento, segundo a Secretaria de Agricultura da Cidade de Goiás. É o maior número proporcional de assentamentos do Brasil levando em consideração o tamanho do município e a área destinada à reforma agrária.
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Para aproveitar o potencial de produção diversificada da agricultura familiar, em setembro de 2021 foi lançado o Vale Feira, um programa social que oferece mensalmente 80 reais a cerca de 200 pessoas em situação de vulnerabilidade para comprarem alimentos produzidos pelas famílias camponesas do município. "Nesse grupo de beneficiários estão pessoas idosas que moram sozinhas, mães solo, dentre outros em situação de vulnerabilidade social. Essas pessoas ganham cédulas específicas e podem comprar qualquer produto à disposição na feira", explica o secretário de Agricultura, Delcídio da Silva Moreira, popularmente conhecido como Japão.
Valmira Matias Pereira é agricultora familiar e vive no Projeto de Assentamento Mata do Baú. Além de comercializar seus bolos, doces e requeijão, ela é uma das coordenadoras da feira, juntamente com outros dois companheiros. Dona Valmira conta que, no início do projeto, foram necessárias muitas reuniões para organizar tudo direitinho. "A responsabilidade é muito grande", afirma.
O programa permite que as famílias comercializem todo tipo de produção das suas terras. A diversidade é de encher os olhos: tem alface, couve, cenoura, beterraba, carne de gado, de frango, de porco, derivados de mandioca, abacate, manga, guariroba, queijo, cana, rapadura, melado e outro tanto que ocuparia mais linhas deste texto.
Segundo Valmira, uma das maiores conquistas, até agora, foi a criação de uma feira própria para as famílias que fornecem para o Vale Feira: "Já existia a feira de domingo, mas lá estão outros vendedores, atravessadores, feirantes que compram do Ceasa. E nós conseguimos criar uma feira, toda quinta, somente com quem está cadastrado no Vale Feira", explica.
A comercialização não se restringe às pessoas beneficiadas pelo programa. A feira é aberta a todo público interessado em levar para casa alimentos frescos e diretamente das mãos de quem produz. Dona Valmira diz que a aceitação dos consumidores é muito grande desde o início. "Foram poucas as vezes que eu voltei pra casa com algum produto. E isso acontece com os outros companheiros também. O momento mais marcante até agora foi quando uma pessoa beneficiada chegou na banca para comprar carne e disse que tinha mais de 3 meses que ela não comia carne", relata a coordenadora.
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Segundo Patricia Dias Tavares, professora do Instituto Federal de Goiás (IFG) e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Agroecologia e Agroecossistemas (NEPAA), o Vale Feira abre caminhos para uma série de outras incidências. A ideia é que o programa se desdobre em outras ações futuras. "A gente avalia toda essa articulação de diversos grupos como uma conquista, é algo muito importante para a região. Em termos financeiros, é um valor que não circulava antes no município e agora está aí. Temos espaço para pensar mais estratégias, pensar em trabalhar a questão da comunicação, da cultura, e transformar a feira em um espaço de referência no município", planeja a professora, que compõe o grupo que contribui na construção da política pública.
Na avaliação de Patricia, há desafios a serem superados, mas as lições tiradas servem de bagagem para a continuidade do percurso: "Ainda há dificuldade, especialmente na logística, em função das distâncias das comunidades até a zona urbana. Mas é uma boa semente que foi colocada na terra e que faz com que esse grupo permaneça organizado. Isso também vai dando condição para acessar outras oportunidades de comercialização e pensar de forma mais estruturada a produção", acredita a professora.
O Vale Feira é uma iniciativa que reúne diversos setores do poder público e da sociedade civil organizada, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Instituto Federal de Goiás (IFG), o GWATÁ - Núcleo de Agroecologia da Universidade Estadual de Goiás, a prefeitura, algumas secretarias e vereadores.
O processo relacionado à sua criação é uma das ações populares que está sendo sistematizada pela iniciativa Agroecologia nos Municípios, que envolve a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a CPT, o IFG, o GWATA entre outras organizações. O objetivo é promover, apoiar e sistematizar processos de mobilização e incidência política no nível municipal, visando a criação e o aprimoramento de políticas públicas, programas, projetos, leis e experiências municipais importantes de apoio à agricultura familiar e à segurança alimentar e nutricional e que fortalecem a agroecologia.
*Rafael Oliveira é comunicador popular da Articulação Nacional de Agroecologia.
**Acompanhe a coluna Agroecologia e Democracia. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de diálogo e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas em iniciativas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de sistemas alimentares. Leia outros artigos.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo