A gente está numa fase do capitalismo tardio que é socialismo ou barbárie
Com quase 18 anos de estrada, Don L, como é conhecido o cearense Gabriel Linhares da Rocha, tornou-se um dos principais nomes do rap no Brasil. Em um cenário dominado por artistas da região Sudeste, a recente honraria de Artista do Ano, conferida a Don pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), o colocou pela primeira vez nos holofotes da música nacional.
Desde o primeiro projeto, Costa a Costa, em 2004, quando trabalhou ao lado de nomes consolidados do rap no Ceará, como Nego Gallo, Don se acostumou a premiações e reconhecimentos, mas nenhum deles apontou um horizonte tão promissor como esse recebido em 2022.
A premiação coroa o seu mais recente trabalho solo, “Roteiro para Aïounz, vol.2”, uma trilogia às avessas, que teve seu primeiro ato com “Roteiro para Aïounz, vol.3”, lançado em 2017. O novo álbum navega por histórias de amor e luta em meio ao confronto direto contra o capitalismo e a opressão.
:: Do brega romântico ao rap: plataforma mapeia diversidade das produções musicais das periferias ::
O título faz referência ao diretor de cinema Karim Aïounz. Don confessa que a cinematografia do premiado diretor cearense sobre os conflitos sociais e os dramas cotidianos de personagens esquecidos pela sociedade, como “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, “O Céu de Suely”, “Madame Satã”, “Praia do Futuro”, “A Vida Invisível”, entre outros, são suas maiores inspirações.
No entanto, uma questão dividiu as atenções do rapper. Enquanto comemorava a premiação, Don se viu fora da capa dos jornais que destacavam os vencedores do APCA de 2022. Segundo o artista, apesar de sua relevância musical, o conteúdo de seu novo trabalho é uma afronta aos meios de comunicação tradicionais.
Leia também: "É chapa quente": a história das avós que têm transformado a periferia de SP por meio do funk
“Eu sou um cara abertamente comunista e esses jornais, eles têm claramente um editorial que tem uma linha política, principalmente esses que me deixaram fora da capa, eles têm um histórico de serem anticomunistas, em primeiro lugar. A gente é um país em que a violência institucionalizada é muito brutal e os veículos de comunicação agem em conluio com a manutenção desse Estado nacional e desse estado das coisas”, explica.
Uma das principais lutas que a gente precisa ter é consciência por território. A gente tem uma população confinada nas favelas, vivendo em condições indignas
Convidado desta semana do BDF Entrevista, o rapper acredita estar mais próximo de um guerrilheiro do que de um MC.
“A gente está numa fase do capitalismo tardio que é socialismo ou barbárie. É poder popular ou barbárie. Uma das principais lutas que a gente precisa ter é consciência por território. A gente tem uma população confinada nas favelas, vivendo em condições indignas, enquanto são o braço, o motor da nossa sociedade”, afirma.
Na conversa, Don ainda fala sobre racismo, influências musicais e sobre a política nacional: “A gente precisa pensar em eleições, a gente precisa ter um horizonte, mas nosso horizonte tem que ser lá na frente. Temos que ter a pauta radical e de vanguarda e elevar o nosso nível lá em cima. Porque a política institucional condiciona dessa forma”.
Conheça ainda: Dos territórios indígenas aos museus: o hip hop ocupa cada vez mais espaços
“As pessoas estão muito preocupadas com o que elas vão comer amanhã, e quando você está preocupado com o que você vai comer amanhã, meu chapa, você não tem muito tempo para participar de uma reunião de coletivo”, completa.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Queria começar a conversa falando sobre essa recente honraria que você recebeu. Você acabou de ganhar o prêmio de artista do ano pela APCA com teu disco “Roteiro para Aïounz, vol.2”. É um reconhecimento importante, não?
Don L: Sim, é um prêmio muito importante, e ser premiado como artista do ano ainda, achei muito foda e achei corajoso dos caras também, pelo que eu fiz no meu último trabalho, pelo que representa esse meu último álbum.
Eu sei que é uma atitude de coragem me colocar como artista do ano, nordestino maldito, rapper, que veio propor novas ideias fora da caixinha do liberalismo e das ideias que estão muito em voga e que dominam também nosso campo artístico.
Estou feliz porque também estou há muito tempo nessa caminhada. Já fui muitas vezes premiado com os outros discos, mas prêmios que eram mais do segmento do rap, vamos dizer assim.
O Roteiro para Aïounz, vol.3 até chegou a ter algumas premiações também e esse disco agora [Roteiro para Aïounz, vol.2] a gente conseguiu ser premiado em quase todos os prêmios que a gente concorreu. Ganhamos melhor disco do Prêmio Arcanjo, mas a premiação de Artista do Ano realmente me fez ficar muito contente.
Premiações são importantes para a gente entrar em festivais, para a gente entrar em espaços como o SESC, lugares que vão te dar uma atenção diferente
Muita gente costuma dizer que o prêmio se coloca na estante e a vida segue, mas é um gás a mais para seguir em frente, não é?
É um gás, cara, porque, querendo ou não, principalmente para um artista como eu, as premiações são muito importantes. Para artistas que pensam ideias de vanguarda, seja no campo das ideias, seja no campo da produção musical, às vezes você tem um trabalho importante e que não tem toda a atenção merecida, que tem muito potencial.
Eu acho que o prêmio leva pessoas a te ouvirem, saca? Tem muita gente que já me conhece, já ouviu falar no meu nome, todo mundo sabe que tem um tal de Don L aí, um rapper que todo mundo fala, mas muita gente nunca deu uma chance para ouvir, por vários motivos.
Porque tem um lance com a imagem, hoje em dia tem todo um novo modo de se fazer sucesso na música e alguns artistas não entram por esse caminho. E para esses artistas, as premiações são importantes, porque aí alguém vai ver lá e vai dizer: “pô, vou dar uma chance para esse maluco, vou ouvir o som dele”.
É importante para a gente entrar em festivais, para a gente entrar em espaços como o SESC, lugares que vão te dar uma atenção diferente depois que você receber uma premiação deste tipo.
Se não dá para furar a bolha, dá para ampliar a bolha…
É, dá para ampliar. Eu tenho furado umas bolhas com esse discurso. Na verdade, tem artistas de vários segmentos, nada a ver com o rap, que curtem muito meu som. A finada Marília Mendonça sempre postava coisas com verso meu, principalmente da mixtape Caro Vapor. E é uma cantora de sertanejo. A mesma coisa o João Gomes.
E muitas vezes chega no público deles também, mas para chegar no público é um trabalho mais demorado de divulgação, videoclipes são muito importantes hoje em dia. Enfim, precisa de investimento para a gente conseguir furar mais a bolha e chegar mais longe.
Vi você comentando sobre a tua ausência nas manchetes dos grandes jornais que repercutiram a premiação. Por que você acha que está fora da capa do jornal?
Porque eu sou um cara abertamente comunista e esses jornais, eles têm claramente um editorial que tem uma linha política, principalmente esses que me deixaram fora da capa. Eles têm um histórico de serem anticomunistas, em primeiro lugar. São os jornais que, muitas vezes, espalham notícias falsas sobre experiências socialistas pelo mundo, por exemplo.
Se eles [os grande jornais] puderem, me deixam invisível
Sem contar o que eles fazem aqui na política interna do país. É uma galera que tem claramente um lado no espectro político, pelo recrudescimento do neoliberalismo no Brasil, pelo capitalismo ultrafinanceirizado. Essa galera que, hoje em dia, eu tenho para mim que eles vivem mais do mercado financeiro do que do trabalho deles.
Então, o trabalho deles é para influenciar no ganho deles no mercado financeiro. Eu não acredito que a maior fonte de renda deles seja a publicidade ou os assinantes. Eu tenho muito claro para mim que eles realmente têm que me colocar lá só quando eles têm que me colocar. Se eles puderem, me deixam invisível.
E que criaram muito do que a gente está vivendo hoje…
Se você pegar manchete desses caras em 2013, ou na eleição [de 2014] que apoiaram o Aécio, participaram desse, eu não sei nem como chamar isso, é uma mistura de uma interferência da CIA (Agência Central de Inteligência, na tradução do inglês) na democracia brasileira, com um golpe mesmo, um avanço neoliberal da burguesia sobre os direitos trabalhistas, sobre as poucas conquistas que a gente tinha, do povo trabalhador brasileiro, para aumentar a lucratividade deles.
Você vê que na pandemia, os maiores bilionários brasileiros ficaram mais bilionários e que essa crise toda que a gente está vivendo é crise para nós, para quem tem o poder financeiro no Brasil não tem crise nenhuma. Estão ganhando mais dinheiro do que nunca. E esses veículos de mídia foram bastante importantes na consolidação dessas contrarreformas, desse golpe que aconteceu no Brasil.
Teu disco é uma ode à revolução. Você fala, inclusive, em “A todo vapor”, que se sente mais guerrilheiro do que MC. A pressão por justiça de várias minorias, pelo fim do racismo, que na verdade é um racismo contra a maioria do país, tem ganhado cada vez mais força e mais contundência. Quão perto desse momento de explosão você acha que a gente está?
Eu não sei, eu realmente não me considero apto a fazer esse tipo de previsão, saca? Eu tenho ciência das minhas limitações em termos de análise de conjuntura política e tal, mas ao mesmo tempo que têm essa consciência das pessoas, a gente vive num país dos mais contrarrevolucionários de que se tem notícia . A gente é um país em que a violência institucionalizada é muito brutal e os veículos de comunicação agem em conluio com a manutenção desse estado nacional e desse estado das coisas.
Ao mesmo tempo em que eles fingem que estão tentando diminuir o racismo, eles estão lutando por pautas que são estruturalmente racistas. Enquanto os caras colocam uma mina preta na propaganda, na publicidade, quando eles colocam pessoas trans no Big Brother, eles apoiam políticas que marginalizam essa população.
A gente vive num país que, por muito tempo, o discurso oficial era de que é o país da integração, que não existe racismo, enquanto a gente vive em um dos países mais racistas de que se tem notícia
São políticas estruturais, como por exemplo a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência, o sucateamento de todos os serviços públicos, a privatização das grandes empresas brasileiras, como a Petrobras, a entrega dos nossos poços de petróleo, que foram construídos com o nosso dinheiro, que seria uma forma de financiar a nossa educação, nossa saúde. E isso beneficia quem? A população que sempre foi marginalizada nesse país.
Apesar disso tudo, o povo está mais consciente, o racismo brasileiro parou de ser uma coisa negada pelas pessoas. A gente vive num país que, por muito tempo, o discurso oficial era de que é o país da integração, que não existe racismo, enquanto a gente vive em um dos países mais racistas de que se tem notícia. Eu acredito que seja o mais racista do mundo.
Então, tem uma consciência de luta, mas não sei o quanto isso está perto. Mas isso é o menos importante, na verdade. Não interessa o quanto está perto, o que interessa é que a gente tem que fazer tudo o que a gente pode agora, não temos tempo. A gente está numa fase do capitalismo tardio que é socialismo ou barbárie. É poder popular ou barbárie.
Se a gente não lutar por uma mudança estrutural nesse país, por terra para os povos… uma das principais lutas que a gente precisa ter é consciência por território. A gente tem uma população confinada nas favelas, vivendo em condições indignas, enquanto são o braço, o motor da nossa sociedade, as pessoas, os trabalhadores.
E lutar contra isso é se organizar, é tentar conscientizar as pessoas numa luta realmente radical, ir na raiz do problema. A gente precisa voltar a ter grandes sonhos e não se contentar com pequenas mudanças. A gente negocia as pequenas mudanças agora, para já, porque precisam ser feitas, porque a fome não espera, tem muita coisa que não espera.
Mas a gente tem que ter o olho na mudança estrutural, que vai realmente acabar com o racismo, que vai realmente acabar com essa desigualdade social, que vai realmente devolver aos povos indígenas o que pertence a eles.
Você cita no disco Carlos Marighella, Malcolm X, Célia Sanches, Comandante Marcos, Ho Chi Minh, entre outros. Você acredita que a revolução virá inspirada nesses grandes nomes ou é um caminho novo que a gente precisa trilhar?
As duas coisas. A gente não tem como fazer nada novo se a gente não aprender com as experiências do passado, esse é o primeiro ponto. Eu sou muito limitado nisso porque eu não estudei o suficiente, mas eu estou dentro dessa perspectiva. Eu conheço as histórias, mas nós, como corpo coletivo, como organização coletiva, precisamos saber dessas histórias, discutir sobre elas, saber onde foram os erros e onde foram os acertos, para poder criar nosso caminho, um caminho original, caminho único.
Modéstia à parte, o Brasil é um país que tem grandes possibilidades nesse caminho revolucionário. A gente praticamente não precisaria de ninguém, a gente tem tudo o que a gente precisa. A gente tem afeto, a gente tem recursos energéticos.
Só que a gente tem que pensar também em novas formas de vida, pensar no que é esse capitalismo predatório, esse desenvolvimentismo predatório, que é, por exemplo, um modelo socialista dos anos 20, da Rússia, que não cabe mais em um modelo atual.
Não é só quando tem uma reportagem do Fantástico que tem trabalho escravo no Brasil. Tem trabalho escravo no Brasil, tem trabalho análogo à escravidão e tem trabalho que é exploratório
Mas tem que se estudar sobre isso, tem que ver o que os vietnamitas estão fazendo, o que os chineses estão fazendo. Temos experiências bastante relevantes para aprendermos com eles e propor nosso modelo.
Ao mesmo tempo que a gente tem esse gás, tem gente estudando e se mobilizando, com um movimento negro atuante, a gente vive também uma espécie de inércia coletiva. O brutal assassinato do Moïse, espancado até a morte em um quiosque na barra da Tijuca por cobrar o seu salário atrasado, não trouxe um apelo social das massas, uma indignação coletiva...
Eu acho que está muito cedo para a gente saber disso. Pode ser que aconteça ainda, porque eu acho que isso foi uma coisa muito brutal, foi uma violência do nível do nosso passado escravocrata, que ainda está aí nos dias de hoje.
Se você for ver no campo, por exemplo, isso acontece sem os holofotes da mídia. Tem uma liderança camponesa morrendo por semana, no mínimo, no Brasil. Se você prestar atenção, você vê isso. Teve um dia que eu comecei a ver o tanto de gente assassinada no norte do Brasil, nesses lugares onde o latifúndio impera. O latifúndio é a continuação da escravidão.
Não é só quando tem uma reportagem do Fantástico que tem trabalho escravo no Brasil. Tem trabalho escravo no Brasil, tem trabalho análogo à escravidão e tem trabalho que é exploratório. Pessoas que são exploradas e, quando reivindicam seus direitos, são brutalmente assassinadas.
Isso acontece direto e foi o que aconteceu com o Moïse no Rio de Janeiro, numa área de milícia. O Rio de Janeiro vive um negócio único. Se tem uma experiência anarcocapitalista, neoliberal, louca, fascista no mundo, é o Rio de Janeiro. As pessoas têm medo.
Agora, uma grande mobilização popular, ela passa por cima disso aí tudo. Não sei o que vai acontecer, mas a gente trabalha para que aconteça, para que as pessoas realmente tenham noção de que a gente, coletivamente, tem força.
O rap no Ceará não é novo, você, Nego Gallo, entre outros, já trilharam um caminho. O Costa a Costa foi premiado, reconhecido, mas há uma cultura, não só no rap, claro, na música, nas artes como um todo, de prestigiar os artistas do eixo do sudeste, São Paulo, Rio e Minas. O caminho foi pesado até aqui até ser apontado como artista do ano?
Muito, cara. Estou na estrada há bastante tempo, mais de 10 anos, sei lá, nem contei quantos anos são, mas a gente tem pouco incentivo no Nordeste. Não é só essa parada do Sudeste não reconhecer, porque os aparatos de mídia e essa coisa toda estão todos aqui no Sudeste.
Existe uma visão do Nordeste muito caricata e a gente tem pouco incentivo, principalmente para quem faz arte de vanguarda, arte com um potencial. Eu faço rap, que hoje em dia é Música Popular Brasileira. Ainda assim, é uma dificuldade gigante de conseguir espaço.
Fiquei a vida toda fora dos grandes festivais, mesmo tendo público. Em Roteiro para Aïounz, volume 3, eu lotei todos os Sescs que eu fiz lançamento. Mesmo assim, as pessoas que fazem festa não olharam para isso: “Vamos chamar ele para os shows, vamos chamar para os festivais”.
Fiquei de fora da maioria dos festivais, dos prêmios e agora chegou o momento em que é difícil me ignorar, porque meu nome está em evidência. Mas, em compensação, tem muitos outros artistas nordestinos que eu não quero que eles demorem o tanto que eu demorei para conseguir.
Preciso de mais incentivo, a gente precisa de apoio à cultura mesmo, para conseguir criar um mercado sólido entre nós e não depender do eixo Sul e Sudeste. E isso tudo passa por um projeto de Brasil diferente, eu não consigo separar as coisas mais.
A gente tem um PIB menor, a divisão econômica desse Brasil é muito desigual entre os estados. A gente não tem um projeto de integração nacional de verdade, de desenvolvimento do Nordeste, do Norte, de forma igualitária.
A gente tem que fazer todas essas frentes ao mesmo tempo e lutar pela cultura, porque a cultura é uma das coisas mais importantes de um país. É um dos maiores orgulhos que a gente pode ter do Brasil.
Você sempre foi fã de rap e sempre teve isso como um norte ou balançava para outras influências?
Não, nunca tive uma grande influência, porque eu sempre me vi como uma situação muito especial. Eu sou um cara muito fora dos padrões. Mas eu tenho várias influências para fazer o meu caminho. Todo esse tempo que você passa fazendo seu corre, quando eu já tinha um público nos últimos anos, e que mesmo assim ficava fora dos grandes festivais, fora dos grandes prêmios, eu sempre lembrava de Racionais.
Eu cresci vendo o Racionais ficar cada vez maior, mas eles não iam para a mídia, estavam fora de todos os festivais. Cara, o Racionais está indo para o Rock in Rio agora, tem noção do que é isso? É o maior grupo musical da história do Brasil e é a primeira vez que estão indo para o Rock in Rio.
Isso não impediu de eles serem gigantes, de serem cada vez maiores e é uma música que a molecadinha de qualquer periferia do Brasil, que tem 18 anos, 19 anos agora, vai ouvir a mesma música que eu ouvi com 26 anos, e eles vão estar curtindo um disco que é de 2004, porque a música dos caras é imortal.
Isso me inspira muito, mas tem outras inspirações na música brasileira, no samba. E tem coisa que é triste, mas ao mesmo tempo são grandes obras. Você vê que nada impediu os grandes sambistas de continuarem fazendo o samba, e muitas vezes eles só foram reconhecidos muito velhos.
Você tem sambistas que foram gravar agora. Eu estava ouvindo o disco do Batatinha, cara, aquilo é maravilhoso, é uma coisa de um nível indescritível. E o cara só foi gravar depois de velho. A gente tem muito disso no Brasil, porque a gente vive num modelo de sociedade cada vez mais em função da mercadoria, do mercado, sobre a perspectiva do que é vendável ou não.
Sobre eleições, você acredita que a política institucional pode apresentar saídas para essa desigualdade que a gente tem falado nesse papo?
Eu acho que a política institucional é necessária para a gente conseguir sair do estado que a gente está e construir um ambiente revolucionário no Brasil. Porque eles mantém esse estado de miséria, esse estado das coisas, porque eles sabem que esse estado é propício.
Se a gente tivesse uma esquerda que chega no poder falando de passe livre, chegando lá você teria poder de barganha para negociar uma passagem de ônibus mais barata
É um estado de extrema dificuldade, de individualismo extremo. As pessoas estão muito preocupadas com o que elas vão comer amanhã, e quando você está preocupado com o que você vai comer amanhã, meu chapa, você não tem muito tempo para participar de uma reunião de coletivo.
Então, eu acho que, primeiro, a gente precisa pensar em eleições, a gente precisa ter um horizonte, mas nosso horizonte tem que ser lá na frente. Temos que ter a pauta radical e de vanguarda e elevar o nosso nosso nível lá em cima. Porque a política institucional condiciona dessa forma.
Vamos supor que o Lula entre lá e seja o presidente, falando de passe livre - não estou falando que ele vai fazer isso, não tenho essas ilusões - mas se a gente tivesse uma esquerda que chega no poder falando de passe livre, chegando lá você teria poder de barganha para negociar uma passagem de ônibus mais barata.
Mas se você já chega falando que só não quer aumentar, então o que vai ser negociado é aumentar menos, entendeu? E isso serve para tudo. A gente precisa entender que a política institucional é uma política a serviço desse Brasil que deu certo. O Brasil deu muito certo. O Brasil foi construído para ser o que é.
Esse estado nunca foi pensado para beneficiar os trabalhadores, a população mais pobre, os descendentes da escravidão brasileira, porque foram vítimas da escravidão brasileira. Tem uma galera que fala assim: “Você sonha muito, isso aqui não é a Disney, isso aqui não é conto de fadas”. Eu entendo, eu sei o que é o Brasil, mas quanto menos a gente sonhar, o nosso nível vai ficando mais baixo. E o que a gente negocia é cada vez mais baixo.
Edição: Monique Santos