Modernistas

Quem foram as artistas da Semana de 22? Qual o legado delas um século depois?

Da educação voltada para a família às exposições: essas mulheres ousaram lutar pela profissionalização por meio da arte

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Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Pagu - Acervo MIS/Reprodução
A participação das artistas não foi pequena

Durante a Semana de 22, artistas e intelectuais apresentaram e discutiram uma nova arte brasileira. O evento que completa cem anos aconteceu, entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo.

O modernismo pretendia romper com as heranças europeias e valorizar o que seria a identidade brasileira na produção cultural.

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Quando falamos da Semana, geralmente os nomes mais lembrados são artistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Menotti del Picchia, Victor Brecheret, Sérgio Milliet e Di Cavalcanti. Mas e as artistas mulheres? Qual a participação e como elas colaboraram para a arte brasileira?

Guiomar Novaes, por exemplo, uma das maiores pianistas brasileiras, se apresentou no primeiro dia da Semana de Arte Moderna de 22. 

Além de Guiomar tocando Chopin no piano, artista que já era conhecida no Brasil e no exterior, mais três mulheres participaram da Semana de 22: nas artes plásticas um nome já consagrado no cenário paulistano Anita Malfatti, a pintora Zina Aita e com artes têxteis Regina Graz. 

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Para a professora Ana Paula Cavalcanti Simioni, do programa de pós-graduação em Culturas e Identidades Brasileiras da Universidade de São Paulo (USP), a participação das mulheres na Semana foi representativa e central para a arte brasileira.  

“A participação das artistas não foi pequena. É importante lembrar que no campo das artes naquele momento essa presença dessas quatro mulheres com uma certa centralidade, não era pouco. É diferente do que acontece em outros países e sobretudo a projeção que elas tiveram. Um exemplo é o Armory Show nos Estados Unidos que é um evento que muitas vezes é comparável a Semana de Arte Moderna que tem uma participação feminina também relevante, mas muito obscurecida na historiografia posterior”, explica. 


A Estudante (1915-1916), obra de Anita Malfatti que pertence ao acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp) / Foto: Wikimedia Commons

Anita Malfatti e Tarsila do Amaral se tornaram expoentes da maior revolução da arte nacional. 

“Anita tem um papel crucial de não só trazer uma linguagem inovadora, porque ela aprende na sua passagem pela Alemanha e pelos Estados Unidos, especialmente o expressionismo e com o seu cromatismo livre, mas também uma maneira de aprender o corpo que é bastante inovadora, para o  cenário paulistano e a consciência dessa modernidade é que a sua exposição provocou. Nos anos 20 a Tarsila do Amaral é artista que melhor consegue dar conta de uma plataforma modernista da sua geração que era um pleito dos críticos, representar uma arte modernista com uma preocupação nacional. Isso se expressa muito bem em obras como “Morro de favela” e a Negra”, comenta Cavalcanti. 

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Mas Anita e Tarsila não estavam sozinhas na vanguarda feminina. Cavalcanti estuda o tema das mulheres modernistas. Em 2018 fez Livre Docência sobre "Mulheres Modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira” e em 2015, realizou a curadoria da Exposição "Mulheres Artistas: as pioneiras (1880-1930)".

A pesquisadora ressalta que outras artistas ao longo do século XIX e XX participaram de diversas exposições em São Paulo e Rio de Janeiro, em torno de 30% dos expositores eram mulheres, mas tiveram menos reconhecimento e algumas foram esquecidas. E que esse é um trabalho ainda está por ser feito e são muitas para serem descobertas

“É o caso de Regina Liberalli que participou de diversos salões nos anos 30, 40 e 50 e hoje é mais lembrada apenas como museóloga, porque ela de fato foi museóloga no Museu Nacional de Belas Artes, mas a trajetória dela com uma artista não é muito conhecida. E outras na época que foram premiadas como a Sara Vilela e a Regina Veiga. Uma questão é esse grande sucesso da Anita e da Tarsila, que são meritórias desse lugar que elas conquistaram, mas por vezes isso sombreou a atuação de outras mulheres no circuito artístico daquele momento”, comenta a pesquisadora. 

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Segundo Cavalcanti, nessa época em que cabia às mulheres, casar, cuidar da casa e ter filhos e ainda sem direito ao voto no Brasil, essas artistas lutaram pela profissionalização por meio da arte. Elas ultrapassaram a linha da educação feminina voltada apenas para o ambiente doméstico. 

“Uma coisa é a mulher ter uma cultura suficiente para educar melhor seus filhos, outra era imaginar que essas mulheres vão expor seus trabalhos, vão receber críticas, vão receber dinheiro pelo que elas produzem. Digamos que tinha uma ousadia sim, era um pouco a mais do que era esperado para o papel de boa ‘mãe republicana’ que era ser uma mulher culta mas nos limites da casa, do círculo familiar ou de amigos mais restritos, então podemos ver como as mulheres de fato lutaram pela própria profissionalização no momento em que isso não era de todo bem visto”, diz Cavalcanti.


Morro da Favela de 1924 de Tarsila Amaral (1886-1973) / Divulgação

Mais escritoras

Mário de Andrade e do Manuel Bandeira são nomes conhecidos da literatura, mas o que escreviam as mulheres nessa época? Temos dificuldade para encontrar seus nomes e escritos hoje pela internet porque elas foram muitas vezes silenciadas, não tiveram repercussão na mídia, algumas obras censuradas e também não foram reeditadas. 

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A doutora em sociologia Maria de Lourdes Eleutério escreveu um ensaio sobre as mulheres escritoras no modernismo no recém-lançado livro ‘Modernismos 1922-2022' com organização de Gênese Andrade pela Companhia das Letras. Ela nos apresenta algumas escritoras.

“As formas que a elaboração literária modernista criou, por exemplo, o uso da fragmentação, os neologismos e a paródia não estão na obra dessas escritoras que eu vou mencionar em seguida. Mas elas constituem ao meu ver uma chave possível para compreendermos a ausência de escritoras modernistas. Exemplos dessa ausência no cânone da literatura modernista são: Maria Cecília Bandeira de Melo, Gilka Machado, Hercília Nogueira e Maria Lacerda de Moura”.

Eleutério pesquisou sobre a reivindicação emancipatória por meio dessas quatro escritoras sob perspectiva sociológica. Ela fala sobre os temas que essas mulheres escreviam. 

“A pauta era eminentemente política porque era acerca da emancipação da mulher, do direito ao voto e ser votada, ingressar em faculdades reservada apenas aos homens, direito ao trabalho, ao divórcio, a ser dona do seu próprio corpo erótico tudo isso está na obra dessas escritoras, mas apenas Crisânteme e Gilka foram reconhecidas no seu tempo, mas elas não são modernistas, elas são modernas. E hoje elas são pouquíssimas conhecidas”, ressalta.  

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Um dos nomes mais conhecidos de Pagu destacou-se por meio do modernismo escrito, divulgando o movimento através de textos em jornais e livros. 

Eleutério finalizou a entrevista ao Brasil de Fato lendo um poema de Gilka Machado:

Ser mulher (Gilka Machado)

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor…

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

Edição: Daniel Lamir