terra sem lei

ARTIGO | Era uma vez no Oeste: o infanticídio político de Jonathas na Zona da Mata de PE

Em comum com o filme clássico, a morte do menino de 9 anos, em Barreiros (PE), tem a motivação: uma disputa por terras

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Marcas de sangue na parede da residência; criança de nove anos foi executada a tiros - Arquivo da comunidade

Em 1968, Sergio Leone dirigiu um épico filme de faroeste: Era uma Vez no Oeste. Com trilha sonora de Ennio Morricone, o filme começa com uma pacata família organizando um almoço em que seria celebrado o casamento do pai, viúvo há seis anos.

Vê-se uma revoada de pássaros. A filha mais velha, Maureen, belamente vestida de branco, sorri com o voo dos pássaros. Um tiro se escuta. Os pássaros continuam voando. Maureen cai no chão. O pai corre em defesa da filha e é alvejado seguidas vezes. Outro tiro atinge o filho do meio.

Finalmente, Jimmy McBain, o caçula, de aproximadamente nove anos, aparece. Ele vê o pai e os irmãos mortos. De trás das moitas, surgem cinco homens armados vestindo capas escuras. Charles Bronson, interpretando o chefe dos bandidos, sorri com crueldade. Pá. Jimmy morre.

2022, Engenho Roncadorzinho, município de Barreiros, Zona da Mata Sul de Pernambuco. Sem trilha sonora, sem câmeras, sem atores famosos, um faroeste acontece.

Sete homens armados e encapuzados entram na casa de Geovane Silva, presidente da Associação de Moradores, e disparam. Jonathas, menino de nove anos, filho de Geovane, se esconde embaixo da cama. Pá. Jonathas morre.

Em comum com o clássico de Sergio Leone, o infanticídio cruel e a sangue frio que aconteceu em Engenho Roncador tem a motivação: uma disputa por terras.

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Terra disputada

A terra onde há 40 anos vivem e plantam cerca de 400 trabalhadoras e trabalhadores rurais, sendo 150 crianças, já foi propriedade da Usina Santo André do Rio Una, que pediu falência há mais de 20 anos e hoje é uma massa falida administrada pela Justiça e cobiçada por empresas que atuam na cultura da cana-de-açúcar.

O Engenho onde aconteceu o assassinato foi arrendado pela Agropecuária Javari, que iniciou o plantio de cana-de-açúcar na propriedade e tem planos ampliar a atividade. Os planos incluem a retirada das famílias que vivem e cultivam suas lavouras no local. Todas as famílias são de ex-trabalhadores da usina, ou seus descendentes, que não receberam seus direitos após a falência e são, portanto, credores da usina.

Em outubro do ano passado, o Tribunal de Justiça de Pernambuco negou pedido de reintegração de posse movido pela empresa e pelo síndico da massa falida, recomendando a solução do conflito por meio do diálogo e da conciliação.

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Banalização da violência

O crime chama a atenção para a banalização da violência e dos conflitos no campo nos últimos dez anos, segundo relatam organizações ligadas à agricultura familiar, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape).

Segundo relatos das organizações do Campo, os casos de violência começaram pela destruição das lavouras, envenenamento das fontes de água utilizadas pela população e das plantações por uso direcionado de agrotóxico.

Os conflitos e a forma de atuação dos assassinos não se limitam ao município de Barreiros e se estendem a outras cidades da Zona da Mata Sul, como Jaqueira e Maraial.

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Conflitos agrários em números

O Brasil é o terceiro país que mais mata ativistas ambientais no mundo, só atrás de Filipinas e Colômbia. E parece que a frequência destas notícias de assassinatos em conflitos por terra começam a normalizar o inominável.

As violações aos direitos humanos na Mata Sul do Estado chegaram à Organização das Nações Unidas (ONU) em agosto de 2021, por meio de relatório da Organização pelo Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas (Fian). Segundo o relatório, os conflitos na região envolvem cerca 1.500 famílias de ex-trabalhadores e 7 mil hectares de terras de usinas falidas.

O relatório Conflitos no Campo Brasil 2020, da CPT, aponta um crescimento de 57,6% nos conflitos agrários no Brasil desde o início do governo Bolsonaro. Só em  2020, o total de conflitos foi de 2.054. Esse é o maior número de conflitos por terra registrado desde 1985. 

Quando a barbárie se torna cotidiana, ela deixa de ser tratada como barbárie e passa a ser tratada como rotina. 

O infanticídio político de Jonathas, porém, nos tira o chão. É um marco. E precisa ser o ponto final da violência no campo. Não podemos mais viver como se estivéssemos em um faroeste. Porque um faroeste é renunciar ao estado de direito e, quando renunciamos ao estado de direito, somos brutalizados e retrocedemos à selvageria.

A morte de Jonathas precisa nos chocar e nos indignar com todas as forças. Jonathas morreu embaixo de sua cama, lugar onde as crianças se escondem quando estão com medo. Que monstro perverso dispara contra uma criança escondida embaixo da cama? Tal qual o personagem de Charles Bronson, que sorri de prazer e de escárnio ao matar o pequeno Timmy, esses assassinos desprezam a vida no que ela tem de mais puro e mais sagrado: a infância e seus símbolos.

Que seja feita JUSTIÇA, pelas mãos do DIREITO, para que os conflitos pela terra não nos transformem em terra sem lei.
 

* Liana Cirne é vereadora do Recife pelo Partido dos Trabalhadores (PT), professora de Direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e ativista do direito à cidade e da cultura.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho