A soltura de pessoas presas por roubos insignificantes, depois que seus casos foram descobertos pelo defensor público ao solicitar à unidade prisional a lista de pessoas encarceradas por furto. O acesso à própria certidão de nascimento. O conhecimento sobre como está o processo que envolve a luta de uma comunidade tradicional pelo seu território.
Essas são algumas das situações em que o chamado “poder de requisição” — prerrogativa para solicitar documentos a autoridades e órgãos extrajudicialmente — é usado por Defensorias Públicas para agilizar e ampliar o acesso à Justiça para a população pobre no Brasil.
A prerrogativa, garantida em lei há 27 anos, pode deixar de existir. Até a meia-noite desta sexta-feira (18), o Supremo Tribunal Federal (STF) deve emitir sua decisão a respeito.
Até o momento, os ministros Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Rosa Weber acompanharam o relator Edson Fachin com votos favoráveis às Defensorias. Gilmar Mendes havia apresentado entendimento contrário, mas mudou seu voto nessa quarta-feira (16). A ministra Cármen Lúcia votou contra a manutenção da prerrogativa.
Os ministros do Supremo julgam a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.852, uma das 22 ações apresentadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) — órgão máximo do Ministério Público Federal (MPF) — que, capitaneada por Augusto Aras, busca derrubar o “poder de requisição” das Defensorias, previsto na legislação federal de 1994 e outras normas estaduais.
O “poder de requisição” na prática
As Defensorias Públicas, previstas na Constituição Brasileira de 1988, têm a função de prestar assistência jurídica integral e gratuita individual ou coletiva para aqueles que não têm condição de pagar por advogado.
Para isso, elas podem exigir documentos, informações e diligências para órgãos públicos, sem intermediação judicial — prerrogativa essa que o Ministério Público também tem.
A ferramenta pode embasar litígios, mas também evitar que casos sejam judicializados. Segundo Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (Anadef), em 2020, a Defensoria Pública da União (DPU) solucionou quase 40 mil casos sem precisar levá-los a juízo.
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Público sem recursos
Defensor público federal em São Paulo, João Chaves ressalta, ao contar o quanto é comum que o órgão requisite certidões de nascimento, que frequentemente pessoas atendidas “não têm meios, por conta própria, para obter documentos ou se deslocar até determinado local para requerê-los”.
Eduardo Kassuga, presidente da Anadef, afirma que, só em 2021, a DPU fez 1,8 milhão atendimentos. “Para cada pessoa atendida, é muito tranquilo estimar que foi expedida ao menos uma requisição”, explica.
“Muitas vezes, pessoas em situação de rua adentram a unidade da Defensoria Pública sem ter sequer o documento de identidade. O que devemos dizer a essa pessoa? Que vá na Secretaria de Identificação Civil e procure seu RG?”, ilustra Kassunga.
“Se a gente passar o ônus da busca por informações, documentos, exames, perícias e certidões para a pessoa, sabemos que ela não vai retornar. E estará definitivamente alijada de qualquer oportunidade de assistência jurídica e social. Isso é indevido”, afirma o defensor.
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Ações contra o próprio Estado
Além disso, João Chaves salienta que um dos pontos centrais em jogo é a obtenção de dados para subsidiar ações contra o próprio Estado.
“Quando há uma comunidade quilombola disputando a titularidade de um território cuja ocupação é tradicional, nós requisitamos informações dos órgãos públicos envolvidos”, alude o presidente da Anadef.
“Se eu perco o ‘poder de requisição’, enquanto defensor, eu teria que propor uma ação preparatória”, explica Kassuga, referindo-se a um procedimento judicial que é, portanto, mais demorado e burocrático. “[Como será possível] conseguir documentos da Funai [Fundação Nacional do Índio], da Fundação Palmares, dos órgãos públicos relacionados ao direito à saúde de determinada comunidade tradicional? Isso não faz sentido”, aponta.
Atuação da PGR para enfraquecer Defensorias
Para João Chaves, o julgamento do STF parece ser a eclosão de uma “tensão institucional nunca resolvida” entre o Ministério Público e as Defensorias.
"Acredito que o MPF — e a PGR faz parte disso — tem um incômodo com a Defensoria Pública por também exercer as funções de tutela coletiva. Isso é um tema interessante, já que, no Brasil, tanto o Ministério Público quanto a Defensoria Pública podem promover ações civis públicas, fazer recomendações, monitorar direitos humanos", analisa Chaves.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou, em nota, que, “em que pese as nobres e essenciais atribuições conferidas à Defensoria Pública, não podem seus membros ostentar poderes que representem desequilíbrio na relação processual, sob pena de contrariar os princípios constitucionais da isonomia, do contraditório, do devido processo legal e da inafastabilidade da jurisdição”.
Corrigir distorção
Diferentemente do argumento da PGR de que o “poder de requisição” das Defensorias seria uma distorção que criaria os chamados “superadvogados”, Chaves avalia que a existência da prerrogativa é uma tentativa “de corrigir a verdadeira distorção”, que, para ele, “é o fato de mais da metade da população brasileira não ter condições de obter documentos e informações por meios próprios”.
O presidente da Anadef alegou desconhecer outra situação em que um órgão público promoveu 22 ações de inconstitucionalidade contra outro. “Nunca vi tanto esforço empregado contra algo essencial, basilar e que não gerava ruído”, avalia.
Risco de colapso
O professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP) Conrado Mendes, no artigo Ao miserável, nem mesmo a Justiça justa, publicado na Folha de S.Paulo, afirma que, se o Supremo acatar a ação da PGR, o cenário será “trágico”.
Em sua visão, “levará ao aumento da judicialização e à redução da já limitada população de assistidos que a Defensoria conseguirá atender”.
"Na fantasia macabra de Aras”, escreve Mendes, “se advogado da Samarco, em escritório na Faria Lima, não tem poder requisitório, por que defensor público que pede acesso a água para crianças e idosos em Mariana deveria ter?”
Definindo o “poder de requisição” como “pilar de sustentação” dos trabalhos das Defensorias, Eduardo Kassuga expõe que, caso ele seja retirado, há “de fato o risco de um colapso institucional”.
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Missão institucional das Defensorias
A expectativa do defensor João Chaves, no entanto, é de que o STF “reconheça o que está evidente: que a prerrogativa de requisição é um instrumento para a Defensoria cumprir suas missões institucionais".
Missões essas que, segundo Chaves, não envolvem “apenas promover qualquer assistência jurídica”, “mas uma que reduza as desigualdades e reconheça as limitações estruturais da maior parte da população brasileira em fazer valer seus direitos”, define.
Edição: Rodrigo Durão Coelho