Cadernos de receitas mostram também como viviam essas mulheres
“Nós brincávamos de ‘cozinhadinha’. Fazíamos um fogãozinho de tijolo, aí as mães davam ingredientes para toda as crianças e é uma coisa que ainda têm Goiás". O ato de cozinhar da chefe de cozinha Letícia Massula começou na infância. Você também inventava as variadas receitas quando era criança? Bolinho de barro, pedras, gravetos, areia, folhas… Tudo servia de ingrediente.
Eu não sei como é na casa de vocês, mas na minha, a cozinha sempre foi o lugar mais habitado da casa. Aos domingos nem se fala. Na mesa, lasanha, salada de maionese, alguma carne.
A comida de tão saborosa dava pra sentir o cheiro da calçada. Nessa época, eu só observava com curiosidade a minha mãe cozinhar e o que nunca faltava nas panelas era afeto. Ali eu nem sabia, mas já começava a aprender a cozinhar. A chef de cozinha Letícia Massula também compartilha desta mesma lembrança.
"Venho de uma família, de uma região que tem uma cultura alimentar muito forte, entre Minas Gerais e Goiás. Praticamente todos sabem cozinhar. Eu não lembro de aprender a cozinhar, mas assim eu estava sempre perto dos fogões e observando, uma hora comecei a cozinhar. A primeira coisa que fiz sozinha eu tinha quatro anos e eu bati uma gemada e comia isso com farinha de milho”.
“O que lembro tenho”, assim dizia o escritor de Guimarães Rosa. Foi ali que começou a jornada de Massula como cozinheira. Ela que cresceu com a diversidade de alimentos do cerrado, na beira do rio Araguaia, Tocantins e Paranaíba e conta que um dos sabores da infância é o fruto pequi. Para ela era tão natural a sua relação com a cozinha que demorou para entender como algo profissional.
“Fiquei um tempo trabalhando como advogada e montei um negócio pequeno na cozinha e aí em um determinado momento, lembro de preencher uma ficha de hotel e na hora de colocar a profissão, coloquei cozinheira pela primeira vez. Quando me perguntavam o que você fazia da vida daí pra frente passei a responder: sou cozinheira”, diz Massula, que é cozinheira há 13 anos e comanda o Cozinha da Matilde.
O chamado para o retorno à cozinha, esse lugar de memórias e afetos veio com força na pandemia. Isolados, passamos a comer menos na rua, e tivemos que redescobrir as práticas culinárias. Programas de TV com chefs de cozinha ensinando os mais variados pratos deliciosos para todos os gostos, os fãs de comida saudável, aqueles que dão preferência para o doce, churrasco, enfim, tem para todos os gostos.
No Brasil de Fato, a comida saudável tem lugar garantido. A chef de cozinha Letícia Massula, compartilhou saberes culinários em quadros no programa Bem Viver na TV e no rádio. Ela comenta que, apesar de ser um passo importante para uma alimentação mais saudável, quem cozinha em casa ainda são as mulheres, então só haverá avanço se houver também divisão do trabalho.
Ouça: Comida de Verdade
“Isso significa que estamos comendo melhor, dando mais atenção para a comida, por esse lado acho extremamente positivo. Inclusive nós damos uma quebrada nessa indústria [alimentícia] que é muito perniciosa e que vende pseudo facilidades e que destrói com a saúde das pessoas, com os ultraprocessados, mas cozinhar mais tem que estar pareada com uma discussão de gênero e da divisão sexual do trabalho”.
“Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida”. Essa é uma das frases do escritor Michael Pollan. A sabedoria das mães, tias e avós sobre alimentação ficaram registradas em cadernos. Mesmo com toda facilidade de encontrar receitas na internet, a jornalista Mariana Weber continuou seguindo a tradição dos cadernos de receitas da família.
“Os cadernos são documentos pra mim, não só do preparo das receitas, mas que contam a vida privada das pessoas e, no caso das mulheres, que quase sempre escreveram aqueles cadernos. Eles falam dos ingredientes que eram usados, dos preparos que eram feitos e vira e mexe. Tem algum recado ou menção às mulheres: essa era da prima tal. Às vezes não são recados tão claros, mas eu acho que eles mostram como viviam essas mulheres”, ressalta Weber.
A mãe de Mariana não era dona de casa, então os cadernos foram quase um modo de passar os aprendizados culinários de uma outra forma. Ela ressalta que saber cozinhar significa retomar essas histórias, fazer comida boa, ter mais autonomia e mais controle sobre a alimentação.
“Cozinhar era uma lacuna para mim. Eu não sabia cozinhar direito, não não me aventurava na cozinha. Até que eu tive filho e senti falta de cozinhar para ele. Foi quando eu peguei o caderno de receitas da minha mãe e resolvi brincar de fazer aqueles pratos pra passar os sabores que eu tinha experimentado na infância”.
Acompanhe: Programa Bem Viver
Além de cozinhar, as receitas passaram a fazer parte de um projeto profissional, A jornalista passou a escrever em um blog as receitas dos cadernos da família e depois de pessoas que conheciam o projeto Caderno de Receitas. Em seguida, resultou em um livro chamado Cozinha de Vó.
“É uma mistura de alguns relatos bem pessoais, da minha relação com a comida, das receitas que as minhas avós faziam para mim ou minha mãe. É uma mistura disso com reportagens que contam histórias de comida. Tem um capítulo em que um chefe de cozinha caiçara conta as tradições da família dele, tem um capítulo em que eu conto como um chefe em Paris resgata o jeito mais tradicional de fazer chocolate numa pequena fábrica”, explica a autora.
E você com quem aprendeu a cozinhar? No Alimento é Saúde lembramos a importância da comida de verdade, de saber cozinhar e de resgatar as histórias dos pratos.
Edição: Douglas Matos e Daniel Lamir