O presidente russo, Vladimir Putin, ao reconhecer a independência de regiões separatistas da Ucrânia, deixou em aberto um ponto crucial para entender os riscos e limites de sua atuação no território do país vizinho. Foi em discurso pela TV na última terça-feira (23) que o líder russo esclareceu que Moscou iria proteger áreas reivindicadas pelas repúblicas separatistas, mas que estão sob controle da Ucrânia.
O novo cenário surge porque as áreas reivindicadas pelas autoridades das repúblicas separatistas contêm áreas que não estão sob seu controle administrativo, mas de Kiev. Ou seja, as aspirações de Putin sobre as autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk compreendem territórios que, hoje, fazem parte da soberania do Estado ucraniano.
A movimentação separatista na região começou após o golpe de Estado de 2014 na Ucrânia, quando estas regiões se proclamaram independentes do governo de Kiev e adotaram uma Constituição própria. No novo documento, as autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk delimitaram o seu território de acordo com os limites fronteiriços das regiões da Ucrânia antes do movimento separatista.
No entanto, como resultado dos combates militares que começaram após o golpe de Estado, elas perderam o controle de parte significativa do território. Por isso, a decisão russa de reconhecer as fronteiras originais de Donetsk e Lugansk, seguindo o que prevê a Constituição das duas repúblicas separatistas, pode deflagrar uma nova disputa por território com a Ucrânia. A maior parte de Donetsk e Lugansk é controlada por Kiev, o que significaria que o movimento de Putin pode legitimar uma expansão do controle dessas repúblicas.
Ao ser questionado sobre os limites fronteiriços do reconhecimento russo, Putin deixou claro na entrevista coletiva da última terça-feira (22) que o decreto contemplava os documentos oficiais das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, inclusive suas Constituições.
“Até que ponto reconheceremos essas repúblicas? Mas nós os reconhecemos, o que significa que reconhecemos todos os seus documentos fundamentais, incluindo a Constituição. E a Constituição define as fronteiras dentro das regiões de Donetsk e Lugansk no momento em que faziam parte da Ucrânia”, destacou Vladimir Putin.
O presidente russo acrescentou que esta questão fronteiriça poderia ser pauta de negociação entre o governo de Kiev e as autoridades das repúblicas de Donetsk e Lugansk, dando a entender que haveria uma janela para uma solução diplomática. No entanto, como destaca o analista-sênior do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, em entrevista ao Brasil de Fato, as autoridades ucranianas nunca sentaram à mesa de negociações com as repúblicas de Donetsk e Lugansk e nem pretendem fazê-lo.
De acordo com ele, possivelmente a Rússia utilizará a questão da fronteira para novamente tentar forçar Kiev a negociar, mas esta estratégia dificilmente traria algum êxito, considerando que não existem muitos casos em que um Estado negocia termos com separatistas.
“Eu acho que a situação atual ficou ainda mais perigosa e a Rússia pode exigir da Ucrânia uma retirada unilateral de suas tropas da linha de contato. E isso significaria para a Ucrânia uma nova perda de territórios, e eu não acho que isso será aceitável para Kiev”, afirma.
Outra decisão importante adotada pelo Kremlin nesta semana foi a autorização de uso das Forças Armadas russas nas autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk por parte do Conselho da Federação (a Câmara Alta do Parlamento russo).
Para Ignatov, a presença das tropas russas no leste ucraniano pode soar como um ultimato a Kiev e desencadear um estopim para um conflito entre as partes, tendo em vista que dificilmente a Ucrânia se submeteria às exigências de diminuição de sua soberania por parte de Moscou.
“Digamos, por exemplo, que a Rússia exija que a Ucrânia retire suas tropas da linha de contato, a Ucrânia não concorda, começa uma guerra, e o que vem pela frente? [A guerra] pode começar agora mesmo, porque o Conselho da Federação adotou uma decisão de enviar tropas russas para lá. E se houver quaisquer combates, trocas de tiros, isso pode ser usado como motivo para atacar as tropas ucranianas”, destaca Ignatov.
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O "enterro" dos Acordos de Minsk
Outro momento que chamou a atenção na entrevista coletiva de Putin na terça (22) foi a confirmação de que os Acordos de Minsk já não teriam mais validade diante das novas condições geopolíticas.
Estes acordos, assinados em 2014 e 2015, previam um cessar-fogo e a retirada de armas da linha de contato no leste ucraniano. Outro ponto fundamental visava uma profunda reforma constitucional na Ucrânia, a partir da qual se daria uma descentralização do poder, garantindo às regiões de Donetsk e Lugansk um status de autonomia especial.
O governo de Kiev não cumpriu com a parte política prevista pelos acordos e as potências ocidentais são acusadas por Moscou de não agir para exigir para que a Ucrânia garantisse a autonomia de Donbass, prevista pelo mecanismo diplomático.
"Sim, claro, agora os Acordos de Minsk não existem. E por que implementá-los se reconhecemos a independência dessas entidades?", disse Putin.
De acordo com o cientista político Vladimir Zharikhin, o fracasso diplomático em relação à crise ucraniana recai sobre a forma com que os Estados Unidos adotaram uma política externa baseada dominação monopolista. Com isso, o espaço para a diplomacia foi sendo minado. Zarikhin acrescenta que os EUA destruíram a base da política internacional clássica — a diplomacia negociada.
Assim, o cientista político diz ao Brasil de Fato que os acordos assinados não são implementados ou são retirados unilateralmente.
“Este destino recaiu sobre os acordos de Minsk. Agora começou a moda da diplomacia das linhas vermelhas. Se você não fizer cumprir com isso ou aquilo, então haverá isso ou aquilo. A Rússia também está aceitando gradualmente essas regras do jogo”, completa.
O pesquisador ainda lembra que, com a ineficácia dos acordos de Minsk para resolver os problemas internos ucranianos, a Rússia chegou a propor a introdução de forças de paz da ONU na linha de contato, mas os países ocidentais discordaram. “Então a Rússia decidiu realizar um congelamento [das fronteiras] com base na força”, acrescenta.
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Portas abertas para armar Donbass
Outro efeito prático do reconhecimento das regiões separatistas diz respeito à abertura que os acordos de cooperação dão para Moscou fornecer equipamentos militares diretamente às repúblicas de Donetsk e Lugansk. Vale destacar que as regiões separatistas atualmente não possuem aviação, por exemplo.
Assim, com o reconhecimento de independência, abre-se a possibilidade de Donetsk e Lugansk terem um Exército mais moderno, escalando ainda mais a tensão na linha de contato.
Importante lembrar que, em seu pronunciamento à população russa, Putin defendeu que a Ucrânia se torne um Estado neutro e desmilitarizado para normalizar as relações entre os dois países. Oleg Ignatov observa que é difícil imaginar um Estado com cerca de 40 milhões de pessoas como a Ucrânia abrir mão de “um atributo de soberania como ter as próprias Forças Armadas”.
A empreitada de Putin, portanto, seria um sinal de que a Rússia continuará pressionando Kiev, incluindo por vias militares, para alcançar seus objetivos de reformular a ordem geopolítica na Europa, expandindo sua esfera de influência na região, mas com a elevação dos riscos de uma guerra.
“A Rússia se move conscientemente em direção a um conflito com o Ocidente, tenta conseguir do Ocidente que ele mude as regras do jogo em diversas esferas e busca reconstruir a ordem europeia que se formou após a Guerra Fria”, completa Ignatov.
Em mais um sinal da possibilidade de um confronto militar, a Ucrânia anunciou nesta quarta-feira (23) um estado de emergência no país e pediu para que os seus cidadãos que se encontram na Rússia deixem o país. Moscou, por sua vez, determinou a evacuação dos diplomatas da embaixada russa em Kiev.
Enquanto parte da comunidade internacional, sobretudo os EUA e países da Europa, se mobiliza para condenar e reagir à iniciativa russa no Leste europeu, a cartada do presidente russo nesta semana indica que o jogo geopolítico no continente saiu definitivamente do plano retórico, tornando as perspectivas de um possível conflito imprevisíveis na região.
Edição: Thales Schmidt