“Tudo com medo”, diz o trabalhador rural Cícero Fabrício da Silva, 54 anos, “nascido e criado aqui”, conforme conta. “Aqui” é a área do Engenho Roncadorzinho, no município pernambucano de Barreiros, onde no último 10 um ataque ainda investigado pela polícia resultou na morte de uma criança, Jonathas Oliveira, de apenas 9 anos. Ele era filho de Geovane da Silva Santos, presidente da associação dos agricultores familiares, que ficou ferido no ataque. Ainda não se sabe a causa do crime, mas os conflitos agrários são uma rotina na chamada Zona da Mata sul. Apenas em Roncadorzinho, são 76 famílias de agricultores.
Cícero é o vice-presidente da associação. “Aqui é tudo família”, diz, lembrando de Jonathas como um menino “bem educado mesmo”. Desde que o crime aconteceu, a polícia faz rondas no local. Porém, o maior receio é o de despejo de uma área onde Cícero e tantos outros passaram toda a vida, desde quando os vários engenhos da região estavam em funcionamento. Muitas usinas faliram, e ex-empregados permaneceram, com suas lavouras e criações. Mas vivem com receio de que empresas que arrendaram as terras tomem suas propriedades e acabem com seu trabalho. “Ameaça aqui é ordem judicial”, afirma Cícero, oito filhos, quatro mulheres e quatro homens. Alguns na escola, alguns cortando cana.
Reintegração de posse
De acordo com o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), há dois recursos em segunda instância sobre o conflito. Um foi interposto justamente por Cícero, contestando decisão da Vara Única da Comarca de Barreiros, que deferiu reintegração de posse do Engenho Roncadorzinho à Agropecuária Javari Ltda. E um agravo da empresa, pelo cumprimento do mandado de reintegração.
“Como o conflito permanece, a Defensoria Pública se manifestou requerendo uma busca consensual do conflito”, informa a assessoria de comunicação do tribunal. O Núcleo de Mediação do TJPE foi convocado para uma tentativa de conciliação, que ainda não tem data.
Conciliação que parece distante. Várias comunidades têm sofrido com tentativas de expulsão, destruição de lavouras e até pulverização de agrotóxicos. “Em 2015 e 2016 eles colocaram bastante veneno”, conta Cícero.
O Ministério Público pernambucano relata que a Promotoria de Justiça de Barreiros reuniu-se no último dia 16 com o delegado designado para o caso, Marcelo Queirós, quando se acordou o envio semanal de relatório policial para o MPPE, em busca de agilidade nas investigações. Também houve uma reunião com a Secretaria de Defesa Social, em que a PM firmou compromisso, segundo o MP, de “manter segurança efetiva” no local por um prazo inicial de seis meses. Dois homens foram presos pela polícia e um menor foi apreendido. A polícia chegou a falar em possível participação do tráfico no crime – que seria uma vingança por suposta recusa de Geovane a vender uma propriedade –, mas diz que a questão agrária ainda não está descartada.
Aviso não faltou
Aviso às autoridades não faltaram, afirma a presidenta da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape), Cícera Nunes da Cruz. “Tivemos várias reuniões com o governo de Pernambuco, inclusive com o governador, Ministério Público, Defensoria, Procuradoria, secretários, Instituto de Terras (Instituto de Terras e Reforma Agrária, o Iterpe, órgão estadual)”, lembra. A mais recente reunião ocorreu na última quarta (23), com a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco. Um grupo de trabalho deve monitorar as várias áreas de conflito.
Ela observa que os trabalhadores estão há muitos anos no local e também têm direito a terras. Não são invasores, destaca. “Nós queremos o desenvolvimento do estado, mas desde que seja respeitada a questão ambiental e o direito de quem está lá. É uma construção de justiça”, diz a presidenta da Fetape, que acompanha o caso ao lado da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Mas o que não pode acontecer, afirma Cícera, é forçar a expulsão desses trabalhadores para, por exemplo, criar gado no local. A Fetape estima a área litigiosa em 10 mil hectares, com aproximadamente 5 mil famílias espalhadas na região.
Responsabilidade do estado
“Vai criar gado de qualquer forma? Cana? Não! Precisa de planejamento”, acrescenta Cícera, ela própria uma agricultura familiar e moradora em assentamento. “Nós alimentamos a mesa brasileira. O estado precisa assumir essa responsabilidade, de (criar) políticas públicas para a gente trabalhar. A cidade precisa de alimentos. Sem o campo, a cidade não almoça, não janta.”
No dia 18, um protesto contra a morte de Jonathas e pela paz mobilizou centenas de trabalhadores rurais da região até Roncadorzinho. Também estiveram presentes parlamentares das comissões de Direitos Humanos da Câmara e do Senado. Muitos denunciaram a violência. Há pessoas incluídas no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas. Querem o direito à terra e ao trabalho. “É muita terra que está gerando conflito, que gera outros problemas sociais”, diz Cícera. “Ou resolve isso ou vai morrer mais gente, vai ter conflito.” Ela constata que, aparentemente, a tragédia chamou a atenção da sociedade para o que acontece na região. “Jonathan nos deixa a esperança de dias melhores.”