O nosso futuro depende da nossa capacidade de construir um amplo programa de reforma urbana
Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro*
Será possível encontrar na “desordem urbana” a causa para tantos desastres recentes: Petrópolis (RJ), Franco da Rocha (SP), Belo Horizonte (MG), o sul da Bahia... combinada com os eventos climáticos extremos?
Na verdade, são consequências trágicas de uma ordem urbana fundada na combinação entre o laissez-faire do mercado e a desconstrução da capacidade estatal em exercer suas funções de planejamento, prevenção e regulação das cidades. Contamos hoje com um sistema eficiente de monitoramento e gestão de riscos de desastres.
A nível nacional, existe o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações criado em 2011 para gerenciamento da atuação governamental frente a desastres ocorridos em território nacional. Este sistema enviou alertas sobre a iminência de desastres em Petrópolis.
Há o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad) do Ministério do Desenvolvimento Regional, criado em 2005, para gerenciar as ações estratégicas de preparação e resposta a desastres em âmbito nacional. Foi criada em 2012 a Força Nacional de Apoio Técnico de Emergência, um organismo interministerial para a reconstrução de municípios atingidos.
Ainda em 2012 foi decidido pelo governo federal que todos os municípios que eventualmente sofram transtornos por causa de eventos climáticos recebam um cartão de crédito em nome da Defesa Civil, que objetivava a utilização dos recursos públicos com rapidez e transparência, com a finalidade de mitigar os impactos do desastre natural.
No plano local, Petrópolis conta com um atualizado Plano Municipal de Contingência para o monitoramento e gestão de desastres, prevendo a integração entre as diferentes instituições envolvidas com a função de cada uma definida em um documento.
:: Eventos como a tragédia de Petrópolis (RJ) se repetirão mais vezes, aponta relatório do clima ::
A existência deste conjunto de órgãos e ferramentas revela uma potencial capacidade estatal na sociedade brasileira para prevenir, gerenciar e mitigar os desastres climáticos-urbanos que vêm provocando tragédias em nossas cidades. Entretanto, esta capacidade vem sendo fragilizada pela política de desmonte do Estado brasileiro em curso desde 2016.
A gramática do governo das emergências substituiu a gramática do planejamento e da regulação pública em nome de um neoliberalismo radical e anacrônico que atravessa as três instâncias de governo. No plano municipal, a burocracia profissional na gestão das cidades foi desprestigiada e deslocada para abrir espaço para o governo direto pelas forças e interesses do mercado e patronagem urbana.
A adoção do governo das emergências é mais rentável eleitoralmente que o pouco visível governo do planejamento e das ações baseadas na ciência. Gera votos, alimenta clientelas eleitorais e incentiva apoios de campanha, além de legitimar narrativas salvacionistas. Imaginem o rendimento político alcançado pelos donos do poder, prefeitos, governadores e até o presidente, ao aparecerem nas mídias com coletes das “defesas civis” e os pés na lama, com as “soluções salvadoras”!
:: Impacto de chuvas no PIB de Petrópolis será de R$ 665 milhões, afirma pesquisa da Firjan ::
A lógica do governo das emergências também se manifesta na realização dos investimentos urbanos e ambientais anunciados a cada desastre. No caso do Rio de Janeiro, parece ser uma prática consciente dos donos do poder: a gestão de Cláudio Castro (PL) gastou apenas metade do previsto em prevenção de tragédias no Rio de Janeiro.
Segundo matéria da Folha de S. Paulo com dados do Portal da Transparência, apenas 47% do valor previsto em orçamento para ser gasto em 2021 no programa de prevenção e resposta a desastres foi de fato empenhado. Em 2013, o então governador Sergio Cabral (PMDB) investiu apenas 37% da verba destinada a obras na Serra e na Baixada - dos R$ 4 bilhões disponíveis, apenas 1,5 bilhão foi efetivamente usado em obras, segundo a Revista Veja.
Isso tudo mesmo com o conhecimento das tragédias anteriores ocorridas na Região Serrana, como a que ocorreu em 2011 e afetou os municípios de Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis, Sumidouro e São José do Vale do Rio Preto, resultando em mais de 900 mortos e 100 desaparecidos, além das 35 mil pessoas que perderam suas casas ou tiveram que sair por conta do risco de desabamento.
O padrão do governo das emergências como uma das dimensões da nossa ordem urbana vem cobrando o seu alto preço. Segundo estudo da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), o PIB de Petrópolis deve ter perda de R$ 665 milhões com a chuva. Mas, como calcular o custo humano desta sucessão de desastres urbanos-ambientais? Quando se trata da vida, não há como monetizar.
É incomensurável as múltiplas perdas experimentadas pela população, com as mortes, a destruição das suas moradias, o desterro, o deslocamento. Estes desastres, assim como a pandemia de covid-19, revelam um grande desafio nacional: a atual reprodução da vida biológica e social, individual e coletiva depende da integração entre o natural e o construído nas cidades.
O que implica dizer que o nosso futuro depende da nossa capacidade de construir um amplo programa de reforma urbana baseado nos princípios previstos na Constituição de 1988 e no Estatuto das Cidades, postulando a função social da cidade na preservação e reprodução da vida acima e em oposição à acumulação privada de riqueza e poder. Este é o caminho para superarmos a lógica dos governos das emergências e seus custos econômicos e humanos.
*Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é Professor titular do IPPUR/UFRJ e Coordenador Nacional do INCT Observatório das Metrópoles.
**Há mais de 20 anos o INCT Observatório das Metrópoles vem trabalhando sobre os desafios metropolitanos colocados ao desenvolvimento nacional através da sua rede de pesquisa, organizada em 16 núcleos regionais. No contexto da atual crise econômica, social e sanitária, suas respectivas consequências presentes e futuras podem ser elementos mobilizadores para a construção de uma contra narrativa progressista e redistributiva para o país. Esta coluna se relaciona com os esforços atuais da nossa rede de reflexão e incidência sobre o tema, a partir do projeto "Reforma Urbana e Direito à Cidade nas Metrópoles". Leia outros artigos aqui.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo