Na quarta-feira (2), o Brasil votou a favor de uma resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas (AGNU) que condena a operação militar da Rússia na Ucrânia, classificada como uma invasão. Mas isso não significa que o presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) esteja alinhado com o Itamaraty e muito menos que tomará uma posição menos dúbia do que o habitual.
Enquanto alega manter “isenção” com relação à guerra, iniciada pelas tropas russas em 24 de fevereiro, o presidente também demonstra e reafirma suas afinidades com o líder russo Vladimir Putin, que vão além de interesses econômicos. Nesta semana, Anatoliy Tkach, diplomata encarregado de negócios da Embaixada da Ucrânia no Brasil, questionou a imparcialidade no conflito: “Nós sabemos quem é o agressor e quem é a vítima”, discursou para a imprensa em Brasília.
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A estranha mudança de posição bolsonarista
A mudança de rota da diplomacia brasileira causa estranheza e certa divisão na base de apoio bolsonarista, que passou a se identificar com a resistência ucraniana contra a ocupação da Criméia pela Rússia desde 2014. Em protestos na Avenida Paulista, em São Paulo, e em Brasília, apoiadores de Bolsonaro ostentavam bandeiras da Ucrânia ou ainda uma bandeira rubro-negra com o brasão da guarda nacional ucraniana – símbolo apropriado pelos grupos paramilitares de extrema-direita do país que passaram a inspirar grupos fascistas e neonazistas brasileiros.
Mas o mundo muda rápido; e as alianças entre países no xadrez geopolítico, também. Se parecia óbvia a preferência brasileira pelos ucranianos, a recente aproximação com a Rússia colocou o país na contramão das potências ocidentais que fazem parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), inclusive os Estados Unidos. Há em Bolsonaro um especial interesse pelo país comandado por Vladimir Putin, que, por sua vez, também enxerga o Brasil no seu lado do tabuleiro.
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Interesse mútuo entre Bolsonaro e Putin
“Se o Brasil estava isolado e à procura de um aliado poderoso e hostil à ordem liberal, a mesma coisa vale para o Putin”, comenta David Magalhães, coordenador do Observatório da Extrema Direita e professor de Relações Internacionais da PUC-SP, que também chama a atenção para o interesse repentino do presidente russo com o Brasil.
“Quanto mais a Rússia se isola, mais eleva o tom contra a ordem liberal que Joe Biden pretendia restabelecer após a saída de [Donald] Trump, mais se aproxima de figuras como Bolsonaro”, aponta.
Magalhães também reforça que Putin tem feito alianças com países e grupos políticos hostis à Otan e ao multilateralismo, sem fazer distinção da coloração ideológica.
“Pode ser a Marine Le Pen, do ultra-direitista Reagrupamento Social, passando pelos nacionalistas árabes, como o Bashar al-Assad da Síria, e pela chamada esquerda bolivariana na América do Sul”, exemplifica.
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Sem Trump e sem Netanyahu
Sem ter as parcerias de Donald Trump, nos Estados Unidos, e nem Benjamin Netanyahu, em Israel, Bolsonaro ficou sem duas importantes referências para seguir sua cruzada contra a Nova Ordem Mundial. A obsessão em seguir os ensinamentos do seu guru, Olavo de Carvalho, que morreu em janeiro deste ano, era fielmente representada pelo ex-chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, que em outubro de 2020 chegou a defender que o Brasil fosse pária “em nome da liberdade”.
Esta semana, já com a guerra na Ucrânia a todo vapor, Bolsonaro compartilhou por WhatsApp, em um grupo de apoiadores, um texto apócrifo intitulado “A única verdade”, segundo reportagem de O Globo. A mensagem explica porque a Rússia precisaria ocupar um lugar central no mundo na luta contra a “aliança globalista”, que seria formada pelos Estados Unidos, de Joe Biden, e pelas potências europeias.
Militância dividida
Essa jogada estratégica de Bolsonaro, costurada desde dezembro passado pelo atual chanceler, Carlos Alberto Franco França, gerou uma enorme confusão entre seus seguidores, que ainda veem o Brasil como bastião do Ocidente, cristão e conservador. Essa é a avaliação de Tito Barcellos, geógrafo e mestre em Ciência Política.
“A ideia de ‘ucranizar’ o Brasil ainda permanece, mas existem outros círculos, alguns até nas Forças Armadas, que defendem uma posição mais pró-Rússia, considerando nossas vulnerabilidades no setor de fertilizantes”, comenta Barcellos, que relembra o argumento usado por Bolsonaro para viajar até a Rússia pouco antes do conflito estourar: “Somos os principais compradores de fertilizantes da Rússia e de Belarus. Só em 2019, compramos mais de 2 bilhões de dólares em fertilizantes”.
A dependência brasileira em relação ao insumo também motivou Bolsonaro a propor a mineração na foz do Rio Madeira, próximo a uma reserva indígena, para suprir uma possível falta de potássio. Ainda há divergências sobre os impactos ambientais e mesmo sobre a disposição em investir em operações de extração mineral desse tipo. Contudo, o tema deve permanecer em alta, já que, nesta sexta-feira (4), a Rússia pediu a suspensão da exportação de fertilizantes devido às sanções econômicas dos Estados Unidos e da Europa contra o país.
Ainda sobre a divisão da base bolsonarista, David Magalhães também destaca o constrangimento causado com esse realinhamento temporário da política externa mundial. “O pessoal da direita que apoia a Ucrânia disfarça por que não quer sair na foto de Joe Biden, (Emmanuel) Macron, Justin Trudeau, além da ONU, enquanto o pessoal que está apoiando o Putin não quer sair do mesmo lado que a Nicarágua e até a Venezuela, que talvez seja, para essa direita, o inimigo número um na América Latina”.
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Semelhanças entre Putin e Bolsonaro
Além de interesses comerciais e talvez até bélicos nas negociações com a Rússia, analistas também reconhecem características de Putin “compatíveis” com as do presidente brasileiro, ou que pelo menos são motivos de inspiração. Barcellos menciona a associação indissolúvel entre a igreja ortodoxa e o Estado, que, desde o início do século, tem se moldado aos anseios do ex-agente da KGB, o serviço secreto soviético.
“Você nota que o Putin tem políticas mais à direita no que concerne a valores familiares, à questão das comunidades LGBTQIA+ e sua capacidade de mobilização social, da qual ele é contra”, comenta o geógrafo, embora destaque não ser possível catalogá-lo no mesmo patamar do que considera serem populistas de extrema-direita, como Trump, Viktor Orban (Hungria) e Andrzej Duda (Polônia).
Magalhães, por sua vez, também destaca a simpatia de Bolsonaro em relação à imagem masculina e patriarcal projetada por Vladimir Putin. “Ele sempre fez questão de exaltar esse lado viril, que é faixa preta de caratê, monta em ursos, entra na água a - 20 graus celsius sem camisa. A expressão sisuda de Putin – você raramente o vê sorrindo – sem dúvidas faz brilhar os olhos do Bolsonaro”, opina.
“Então tudo que o Bolsonaro buscou exaltar antes e depois de chegar ao poder é a imagem de um líder forte, masculino, testosterônico, ao mesmo tempo com traços autoritários”, complementa o professor da Relações Internacionais, que também observa os paralelos existentes entre as sociedades brasileira e russa. “Só é possível triunfar com esse perfil numa sociedade patriarcal, misógina e machista. Na França e na Holanda, onde a cultura liberal é enraizada, esse DNA machista não é tão forte”, pontua.
Edição: Rodrigo Durão Coelho