Os planos de Bolsonaro de tirar proveito da crise esbarram no próprio governo
Olá, quando um governo que sempre apostou no caos se depara com uma guerra e com a inflação dos combustíveis e dos alimentos, isso é uma oportunidade ou um risco?
.Terapia de choque. Afinal, qual é o impacto da guerra da Ucrânia no Brasil? Depende. Na economia, as perspectivas são ruins. Segundo o IBGE, o PIB brasileiro cresceu 4,6% em 2021, apontando uma recuperação em relação ao ano anterior. Mas Thaís Carrança, na BBC, lembra que o desempenho brasileiro foi menor do que o de alguns vizinhos, como Argentina e Colômbia, por exemplo; a indústria teve desempenho negativo; e o agravamento das tensões mundiais jogou por terra qualquer perspectiva de melhora para 2022. O que já preocupa a maior parte dos brasileiros, como mostra a pesquisa PoderData. As restrições nas exportações da Rússia impactam diretamente o fornecimento de trigo, milho e fertilizantes para o Brasil. Indiretamente, a produção nacional de soja e de alimentos também pode ser afetada e, ao mesmo tempo, assiste-se a uma escalada nos preços do petróleo e uma queda da bolsa brasileira. Este cenário aponta para uma estagflação, elevação dos preços internos combinado a uma recessão econômica. Porém, para um governo que sempre apostou no caos para se manter no poder, uma crise desta magnitude pode ser uma oportunidade. A começar pela mudança no cenário internacional. Se a intenção do capitão em aproximar-se do Kremlin era chamar a atenção da Casa Branca, ele conseguiu. Agora que Joe Biden está disposto a engolir até Nicolás Maduro em troca de petróleo, porque não engoliria Bolsonaro? O outro flanco de combate do capitão é interno. Para variar, ele aproveita-se da crise para “passar a boiada”, com apoio de Arthur Lira na Câmara, ressuscitando o PL 191 e utilizando o problema da escassez de fertilizantes como desculpa para liberar geral o garimpo na Amazônia. E nem mesmo a mobilização de artistas e organizações sociais em Brasília intimidou Lira e a Câmara, que aprovaram urgência na votação do projeto.
.Faltou combinar com os russos. Os planos de Bolsonaro de tirar proveito da crise esbarram no próprio governo e na difícil realidade do país. Sintoma disso são as desavenças sobre o que fazer para minimizar os efeitos inflacionários da elevação internacional do preço dos combustíveis. O dilema é que o governo terá que tomar alguma medida, ainda mais depois do aumento bombástico do preço da gasolina, do diesel e do gás de cozinha. Mas o mercado veta qualquer medida que vá contra a atual política de preços da Petrobras, que garantiu dividendos de R$ 101 bilhões aos investidores em 2021. O escândalo é tão grande que deve levar o presidente da empresa, Joaquim Silva e Luna, a dar explicações no Senado. É claro que a preocupação de Bolsonaro com os combustíveis deve-se tanto à guerra quanto às eleições. Mas a solução será paliativa, limitada e bancada pelos cofres públicos. Paulo Guedes já havia manifestado sua contrariedade com qualquer medida de congelamento de preços. Agora, a proposta aprovada pelo Congresso inclui a criação de uma conta de estabilização dos preços, redução do ICMS e um auxílio-gasolina. Outro problema é que o plano de abrir o cofre para impulsionar a reeleição pode ser comprometido pelo agravamento da crise econômica. Nele inclui-se a liberação do saque do FGTS, um pacote de crédito de R$ 100 bilhões para micro e pequenos empresários, além das medidas para conter o aumento dos combustíveis. Isso para não falar do “pacote de bondades” de Bolsonaro para as mulheres, como o decreto para a distribuição de absorventes, que não será capaz de apagar nem as ofensas feitas ao longo de sua vida política, nem a destruição das políticas públicas para as mulheres levada à cabo pela ministra Damares Alves.
.Fogo amigo, deserções e traições. A última semana mostrou uma recuperação relativa de Bolsonaro nas pesquisas de intenção de votos. Podem ter contribuído para isto uma certa normalização da pandemia, uma tímida recuperação dos empregos, assim como a desidratação da terceira via. A estratégia de Bolsonaro é consolidar seus palanques eleitorais nos estados, onde acotovela-se com Lula, visando uma recuperação consistente até outubro. Mas a equação é mais complicada do que parece, a começar pela pouca fidelidade do PP, que apoia candidatos de oposição em um terço dos estados. Outro problema é a falta de tato político de empresários bolsonaristas, que começaram a passar o chapéu em grupos de whatsapp e em reuniões com o agronegócio para bancar a reeleição do capitão, gerando insatisfação e desconforto. Atitude, aliás, que contrasta com a conversa de Lula com representantes do agronegócio, onde foram discutidos temas de interesse do setor, como portos, ferrovias e programa de governo. A operação reeleição também exige um movimento na ala militar. Mesmo que tenha blindado Bolsonaro de um impeachment, o general Hamilton Mourão nunca foi próximo do capitão e vai tentar carreira solo no Senado. O general Braga Netto está sendo cotado para o cargo de vice, liberando ao mesmo tempo o Ministério da Defesa para ser ocupado por outro nome. A indicação mais provável é o gen. Paulo Sérgio Nogueira, atual comandante do Exército, considerado um moderado e distante de Bolsonaro. O movimento não seria para agradar um possível adversário e sim para distanciá-lo das tropas. Com tantas peças para movimentar, Bolsonaro segue apostando na força da base evangélica, prometendo a eles mundos e fundos para que não caiam na tentação de votar em Lula.
.Jogo é jogo, treino é treino. Há exatamente um ano, Lula recuperou seus direitos políticos e colocou a oposição ao governo Bolsonaro e a campanha presidencial em outro nível. De lá pra cá, colheu os frutos de seu reconhecimento internacional num país que se tornou insignificante na arena global. Com a moral e a popularidade em alta, tratou de preparar o terreno para a campanha, propondo uma candidatura mais ampla que o PT e tentando costurar os palanques estaduais. Parte das articulações não frutificaram. O PSD resistiu e não aderiu à aliança e deve mesmo substituir Rodrigo Pacheco por Eduardo Leite na disputa. Ainda assim, o PT estará no palanque mineiro de Alexandre Kalil com Rogério Pacheco disputando a vaga para o Senado. O MDB também será o MDB de sempre. Formalmente manterá a candidatura de Simone Tebet mas, na prática, deve compartilhar o palanque com Lula em seis estados do nordeste. E o PSB não topou mesmo a federação com o PT, PCdo B e PV. Ainda assim, o símbolo deste período de bastidores será justamente a filiação de Geraldo Alckmin ao PSB e sua oficialização como vice na chapa em abril, quando também devem estar prontos os primeiros pilares do programa de governo. Das costuras, falta ainda resolver o palanque na Bahia, entre o senador Otto Alencar (PSD) e um nome petista. Mas agora Lula e o PT entram numa nova fase da campanha, fora das quatro paredes e indo para as ruas. A previsão é que a partir do próximo mês, Lula retome as viagens para os estados, priorizando aqueles onde a sua popularidade é maior e também onde haja maior segurança.
.2016 finalmente vai acabar. Eduardo Cunha ganhou, nesta semana, companhia na lata de lixo da história. As declarações sexistas do deputado estadual Arthur do Val (Podemos-SP), vulgo “Mamãe Falei”, em pleno conflito na Ucrânia, atingiram em cheio um MBL que já vinha combalido pelas declarações favoráveis ao nazismo de outra figura pública, o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP). Os dois devem enfrentar processos rápidos de cassação nos próximos dias tanto na Assembleia paulista quanto na Câmara Federal. Além dos áudios machistas, pairam mais suspeitas sobre a tal viagem de “ajuda humanitária” e para onde mesmo foram parar os R$ 212 mil arrecadados pelo movimento para a expedição. Tratado durante muito tempo como ícone pop, o MBL sempre soube usar bem as redes sociais, mas também contou com bastante tolerância e incentivo da mídia tradicional. Celso Rocha de Barros é cirúrgico ao explicar a crise do MBL: a velha direita abandonou o MBL porque, de posse do Estado com o golpe, não precisa mais de mobilizações de rua. Um alerta que deveria valer para outro subproduto de 2016, o bolsonarismo. O ocaso do MBL acabou sendo mais um episódio que arrasta também outra estrela do impeachment para o fundo do poço: o ex-juiz e provável ex-candidato Sérgio Moro. Artur do Val era o palanque de Moro em São Paulo, um presidenciável que agora não tem onde fazer campanha em um dos maiores colégios eleitorais do país. Um retrato do que tem sido sua pré-campanha: solitária e desacreditada.
.Ainda é cedo. Sete capitais e o Distrito Federal já flexibilizaram as medidas restritivas da pandemia, dispensando o uso de máscaras em locais abertos. enquanto o Rio de Janeiro dispensou a obrigatoriedade inclusive em espaços fechados. Além disso, o Ministério da Saúde discute, desde antes do carnaval, a possibilidade de alterar o status da covid-19 para endemia, o que significa uma enfermidade que está presente de forma permanente, com números constantes por vários anos, mas para a qual a população e os serviços de saúde já estão preparados. Porém, o crescimento da média móvel de óbitos, depois de duas semanas de estabilidade, e a opinião dos epidemiologistas desautorizam a ideia. Para os especialistas, o país ainda não atingiu um platô, a estabilidade de casos, e a pressa nas medidas tem mais interesse político do que de segurança na saúde pública. Para o médico e vice presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, Nésio Fernandes, para adotar o status de endemia e flexibilizar as regras, o país deveria ter pelo menos 90 a 120 dias com baixa incidência de novos casos de covid, sem o surgimento de novas variantes de preocupação, uma cobertura vacinal acima de 90% com o esquema completo, um controle na taxa de óbitos, a incorporação de medicamentos ao sistema público de saúde, a manutenção da capacidade de assistência em saúde dos Estados e um consenso internacional com organismos multilaterais. Critérios muito difíceis de serem cumpridos antes das eleições de outubro.
.Ponto Final: nossas recomendações.
.Carta para Arthur do Val: a condição feminina na guerra e na paz. Experiente correspondente internacional, o jornalista Jamil Chade escreve sobre o turismo sexual de Arthur do Val na Ucrânia.
.Pandora Papers e os oligarcas ligados a Zelensky. O GGN relembra o envolvimento do presidente ucraniano e de seus aliados mais próximos no escândalo das contas secretas em paraísos fiscais.
.'Negação do Holocausto é raiz do negacionismo pandêmico'. A filósofa italiana Donatella Di Cesare demonstra os vínculos históricos entre o nazifascismo original e seus sucessores no Brasil e nos EUA.
.A (dupla) ofensiva do agro nas escolas. No Diplô Brasil, quatro pesquisadoras denunciam a ofensiva do agronegócio em direção ao controle da merenda escolar.
.Água da torneira tem produtos químicos e radioativos em 763 cidades. Reportagem da Agência Pública e do Repórter Brasil revela a contaminação da água por agrotóxicos nos serviços públicos de uma em quatro cidades pesquisadas.
.100 anos de Darcy Ribeiro. A Universidade de São Paulo comemora o centenário do autor de “O Povo Brasileiro” com dois debates disponíveis em vídeo.
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Ponto é editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.
Edição: Vivian Virissimo