Me expressando por meio da arte estou ocupando um espaço político
Elas estão nas artes plásticas, na música, na literatura ou no cinema. As vozes das mulheres das periferias do Brasil tem chegado cada vez mais longe, mesmo com as inúmeras barreiras no meio do caminho.
"Como uma mulher negra entendi que era político dizer ‘sou artista’. Porque a maioria das mulheres negras não estão na arte, não conseguem ainda levantar a sua voz. A maioria está sofrendo diversos silenciamentos e opressões”, diz a cantora Priscila Duque.
"Mesmo escrevendo a bastante tempo, achava que eu não era escritora, que era muita audácia ou prepotência me colocar neste lugar. Mas hoje, já me vejo como escritora e sou uma mulher, negra e periférica que faz literatura”, afirma a jornalista Jéssica Moreira.
O que Jéssica e Priscila tem em comum? Elas são mulheres que passaram a narrar as suas vivências nas comunidades periféricas, seja das florestas ou do asfalto, por meio da arte.
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A cantora e performer Priscila Duque é do bairro Icoaraci, em Belém, do Pará. Multiartista, ela canta, compõe, performa, é fotógrafa e trabalha com audiovisual. Ela explica que essa polivalência veio por ofício de lutar na vida.
“Todo o processo de produção que envolve o meu trabalho sempre teve apoio nas execuções, mas no dia a dia é uma sobrecarga muito grande para mim. Sou eu que tenho que estar ali editando com uma mão e fotografando com a outra. Então eu canto, costuro o meu figurino, ajudo a montar o palco, escrevo em editais, vou em cartório… Ou seja, não é apenas alegre ser polivalente, tem um lado muito perverso nisso tudo. Significa que você quase não tem ajuda. Então se você quer ocupar determinado espaço, você tem que fazer tudo ou quase tudo.”
Ela é vocalista do Carimbó Cobra Venenosa que tem seis anos de atuação. As músicas do Cobra Venenosa podem ser encontradas nas principais plataformas digitais por meio de uma produtora independente, mas elas foram retiradas por falta de apoio nos projetos, hoje as músicas podem ser encontradas no Youtube. O carimbó é um ritmo típico do Pará, ela ressalta que muitas vezes a luta é para que a arte amazônica tenha alcance nacional.
“Nós sofremos historicamente uma invisibilização nacional e uma subcolonização. A arte amazônica fica invisível para o resto do país, que seja sempre coloca como algo regional, enquanto as artes produzidas em outras regiões são nacionais”.
Vida, substantivo abstrato
A escrita sempre existiu na vida da jornalista Jéssica Moreira. Ela criava histórias a partir das histórias que ouvia dos seus familiares e fazia poesia de tudo ao seu redor, desde uma árvore cortada até os sentimentos mais profundos que atravessavam ela, como a tristeza e a morte.
Jéssica faz questão de reforçar que não foi uma menina prodígio, mas a escrita ajudou ela a organizar o seu mundo interno.
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Ela aprendeu a ler com seis anos e pensava: ‘quem sabe ler, sabe também escrever’. Jéssica estava certa, virou escritora. Com olhar e a escuta atenta para as margens geográficas e subjetivas, Jéssica Moreira, registrou em crônicas o que sentem, sonham e vivem os moradores das periferias e que percorrem longas viagens nos trens de São Paulo. A autora do livro VÃO: trens, marretas e outras histórias lançado pela editora Patuá.
Sonho com o direito à cidade e a mobilidade urbana, e que a gente não precise carregar no corpo o cansaço de atravessar a cidade todos os dias, como eu trago no ‘Vão’, mas para isso precisamos de políticas públicas. Desejo que as mulheres possam viver além de trabalhar e cuidar de tantas coisas e também que possam ser felizes longe das violências.
Assim como a escritora mineira Conceição Evaristo, Jessica também não teve acesso a livros na infância, mas viveu rodeada de histórias reais. “Eu não cresci rodeada de livros, mas cresci rodeada de muitas histórias. Histórias de vida contadas pela minha avó, pela minha mãe, pelo meu pai e outros familiares. Eram histórias de assombração, da vida no sítio, a malandragem na periferia nos anos 70 e 80.”
Cria de Perus, periferia de São Paulo, a escritora fala que a sua escrita carrega as subjetividades, mas também temas relacionados ao território e a ancestralidade. “Pode até ser que no meio da minha literatura ou do meu poema, eu não esteja dizendo uma palavra de ordem dos meus iguais, mas toda a minha literatura é atravessada pela minha geografia, pela ancestralidade. Nós, pessoas negras, muitas das nossas histórias passam pela oralidade, a minha escrita por mais que tenha o registro da palavra, é uma escrita que passa por aí”.
Segundo o Mapa da Desigualdade de 2020, 18 distritos de São Paulo não têm nenhum equipamento de cultura. Moreira é cofundadora do Nós, mulheres da periferia, fala que não é fácil entrar na bolha do mercado editorial, mas as editoras independentes fazem um contraponto para que escritores possam ser publicados. Ela ressalta que por meio de editais de fomento houve um incentivo para os artistas da periferia nos últimos anos, mas há um longo caminho pela frente.
“Os artistas lutam muito, como por exemplos os que trabalham em bibliotecas comunitárias, nos saraus, onde grandes escritoras e poetas vieram, então foi uma confluência mesmo de fatores que fizeram essas pessoas todas estarem também hoje vivendo disso, mas creio que não é sem desafios, porque faltam políticas públicas, orçamento, embora haja muita criatividade e muito trabalho de qualidade”.
Edição: Douglas Matos