No norte do Brasil, a farinha de mandioca compõe a base da alimentação da população, principalmente a mais pobre. A maior parte dela não é feita em indústrias, mas vem dos quintais de pequenos produtores, que fazem o plantio, a colheita e o beneficiamento do produto.
A farinha e outros alimentos essenciais percorrem extensas regiões de floresta amazônica por meio de rios sinuosos ou estradas de terra. Mais complexa do que nas regiões mais urbanizadas, a logística depende principalmente dos combustíveis, que sofreram o maior aumento do último ano.
Produtores e comerciantes ouvidos pelo Brasil de Fato dizem que praticamente estão tendo que pagar para trabalhar. E temem que a elevação do preço dos insumos possa impedir a chegada de alimentos da agricultura familiar à mesa dos consumidores.
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O impacto no transporte
Maior do que o estado do Rio de Janeiro, o município de Lábrea fica no sul do Amazonas e tem 50 mil habitantes. Os moradores amanheceram nesta sexta-feira (11) com a gasolina até 13,3% mais cara, vendida a até R$ 8,54. Já o diesel aumentou cerca de 20% e pode ser encontrado por R$ 7,84 na bomba.
No porto da cidade, a caminhonete de José Raimundo é carregada diariamente com alimentos produzidos nas comunidades ribeirinhas às margens do rio Purus. De lá, ele transporta a carga para supermercados, feiras e outros comércios.
“Vamos supor um produtor de banana. Se ele gastar 200 litros de diesel, só vai tirar o suficiente para o combustível, ou às vezes nem isso. Com o que ele ganhar, só vai dar para comprar o ‘inflamável’ para voltar para casa. Então não está compensando ele trazer”, explica.
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Mesmo pressionado pela alta da gasolina, ele diz não ter como aumentar o preço do frete. “Senão o produtor rural não paga e nós não trabalhamos. Então a gente tem que trabalhar pelo mínimo possível”, lamenta.
Como resultado, a família de José Raimundo vive uma situação na qual se encontra mais de 40% da população brasileira: a insegurança alimentar. “O jeito é consumir menos. Lá em casa nem se fala mais em carne. De frango, é muito pouco. E os ovos estão com um preço horrível”.
“E, com o preço do gás, a gente vai ter que voltar para o carvão. E não pode mais fazer o carvão porque não pode derrubar madeira. Aí como é que o pobre vai viver? A gente não sabe nem o que fazer mais”, desabafa o profissional do transporte.
Produtores no vermelho
A agricultora Ana Silva de Souza tem um sítio na área rural da cidade, onde produz farinha de mandioca. Lá a raiz é colhida e triturada em uma máquina que funciona à base de gasolina.
O combustível também enche o tanque da moto da família, que transporta o produto para comerciantes da feira central de Lábrea. Os feirantes, por sua vez, embalam a farinha em sacos menores e vendem ao consumidor final.
“Quando a gente põe o preço do produto, o feirante acha caro. Não querem pagar o que a gente quer. Mas não podemos fazer nada. A gente tem que aumentar o preço do produto da gente, senão a gente não trabalha”, conta Souza.
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Souza conta que tem faturado “muito pouco” e espera ganhar ainda menos daqui para frente. Além da pandemia, que afastou os clientes, o principal inimigo, segundo ela, é o preço dos combustíveis e do gás de cozinha.
“A gente passa às vezes a manhã todinha aqui na feira, traz duas sacas do produto e não consegue vender tudo. E tem que pagar para levar de volta, e aí não sobra nada para a gente”, reclama Souza.
Vendas em queda
Um dos principais compradores da farinha de mandioca produzida pela família da agricultora é o feirante Manoel Rodrigues dos Santos. Há 25 anos no ramo, ele disse nunca ter presenciado um momento tão ruim para o comércio de farinha.
Do outro lado do seu balcão, o consumidor reclama do preço. Com a crise provocada pela pandemia, as vendas vem caindo e, consequentemente, a renda do vendedor.
“O produtor vai aumentar o preço e nós temos que aumentar também para o consumidor. A farinha encareceu por causa do aumento dos combustíveis. Eu comprava uma saca de a R$ 200, agora vou pagar 220, 250, só com esse aumento de agora”, calcula.
Infraestrutura só para commodities
Fernanda Meirelles, coordenadora de Políticas Públicas do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam), reconhece que o preço descontrolado dos insumos ameaça a cadeia de produtos da agricultura familiar na Amazônia, que depende do transporte entre distâncias mais longas.
Ela afirma que essa característica não é contemplada em grandes projetos de infraestrutura na região, criando um empecilho ao desenvolvimento econômico regional. A falta de perspectiva acaba estimulando atividades ilegais mais rentáveis, como o corte de madeira, a pesca ou caça ilegais.
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“Quando a gente olha esses projetos, eles acontecem dentro de uma lógica de commodities. A gente vê porto graneleiro, anel sojeiro e investimentos voltados a baratear o transporte de commodities”, afirma.
“Mas a gente não pensa no investimento em outros tipos de produtos, seja agricultura familiar, seja da parte da bioeconomia e produtos da sociodiversidade. E isso precisa ser mudado”, pontua.
Edição: Douglas Matos