No mês de luta da mulher, publicamos uma entrevista com Valdecir Nascimento Nascimento. Ela é uma mulher negra, lésbica, nascida nos Alagados, periferia de Salvador. Ativista do movimento de mulheres negras, historiadora e mestre em Educação, coordenadora e fundadora do Odara — Instituto da Mulher Negra; coordenadora da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB); representante brasileira na Rede de Mulheres Afrolatinoamericanas, Afrocaribenhas e da Diáspora; e também na Comissão sobre a Situação das Mulheres (CSW, na sigla em inglês), da ONU.
Confira a íntegra de sua entrevista:
Brasil de Fato Bahia: Valdecir, primeiro, muito obrigada por ter aceitado o nosso convite. A senhora poderia começar contando um pouco pra gente sobre sua trajetória no movimento negro e no movimento feminista?
Valdecir Nascimento: Eu vou entrar em contato, conhecer e ser convidada, ser seduzida pelo Movimento Negro em 1981, mais ou menos. E vai ser um momento extremamente importante para minha vida, porque o movimento negro vai tirar as vendas dos meus olhos sobre a questão da intencionalidade do racismo, como o racismo é violento, como ele opera na sociedade, como ele é hostil a nós negros, inclusive numa cidade de maioria negra, como Salvador. E como ele vai cercear todas as possibilidades de desenvolvimento, de inserção e de garantia de direitos para a população negra. Então, o contato com o movimento negro vai me convocar para uma reflexão e para eu me posicionar contra um sistema que ameaça a minha vida, que opera no sentido de impedir a minha existência.
Apesar de eu ser mulher, o fato de eu ser negra também se constitui em um elemento determinante e severo do ponto de vista das desigualdades. E o movimento de mulheres feministas é um encontro posterior à tomada de consciência sobre racismo. E, automaticamente, à medida que você vai tomando consciência sobre o racismo, você vai tomando consciência sobre outras formas que agudizam a opressão, como o patriarcado, o machismo, o sexismo, as desigualdades de classe, todas as outras formas de opressão. Mas o racismo foi o meu alerta. É a partir do racismo que eu compreendo o meu lugar no mundo, e é a partir da leitura do racismo, de compreender o meu lugar no mundo que eu vou entender que eu sou mulher, portanto, eu estou em desvantagem. Enquanto mulher negra, essa desvantagem se aprofunda cada vez mais. E aí se eu for agregar ao fato de eu ser mulher, negra, lésbica, de religião de matriz africana, moradora da periferia, moradora do nordeste do Brasil, todos esses elementos vão agregar para mim uma condição de vulnerabilidade maior, uma condição de opressão muito mais profunda. Isso é preciso que a gente compreenda e foi isso que o movimento negro me deu: uma compreensão e uma capacidade de leitura do mundo sobre os sistemas de opressão e de subalternidade que estão montados sobre nós, negros.
Pode nos falar um pouco sobre o 8 de março e qual o papel dessa data para o movimento feminista?
Para o movimento feminista hegemônico branco, o 8 de março é um marco na história da luta das feministas. É um marco, porque, é partir daquele fenômeno que ocorre nos EUA, em que as trabalhadoras e crianças vão ser queimadas dentro de uma fábrica têxtil, que as mulheres brancas vão se levantar contra aquela forma de opressão. E esse 8 de março, que é o dia internacional de luta das mulheres, vai se constituir num marco histórico na construção do movimento feminista hegemônico branco. O que a gente não pode esquecer é que quando as feministas brancas queimaram seus sutiãs e saíram às ruas em protesto — e é muito importante que elas tenham saído — contra as fábricas, as opressões e a super-exploração das mulheres brancas, não podemos esquecer que as mulheres negras já estavam fazendo história de lutas antes. Antecederam quando fizeram o enfrentamento contra a colonização nas Américas, antecederam quando lutaram, queimaram engenhos para que elas pudessem fugir para quilombos.
Uma história não pode fazer a outra história sucumbir. Então, as mulheres brancas quando trazem o feminismo e o marco histórico do feminismo, que é o 8 de março, ela parte do princípio que as mulheres começaram a se organizar naquele momento. E quando se trata de mulheres negras e mulheres indígenas, nossa resistência, nossa luta por humanidade, por direitos humanos, por garantia de direitos na história da América Latina e Caribe, elas se estabeleceram antes. Não tenho dúvida de que o 8 de março é um dia estratégico pra gente potencializar a luta das mulheres no mundo, mas vale ressaltar que é um marco para as mulheres feministas brancas.
Para nós mulheres negras, nós temos um março que é de lutas, um março que temos demarcado, e agora na contemporaneidade de forma mais intensificada, nós temos o 14 de março, que não podemos esquecer do assassinato de uma ativista negra, que é Marielle Franco; nós não podemos esquecer em março da figura que nasce no dia 14 de março, que é Carolina Maria de Jesus, que foi uma catadora, uma escritora, uma mulher negra. Também nós utilizamos o março para denunciar o assassinato de Cláudia Oliveira, que foi arrastada pelo carro da PM no Rio de Janeiro, porque reagiu ao assassinato do filho. Também o março atravessa nossa luta com o dia 21 de março, o Dia Internacional contra Todas as Formas de Racismo, Discriminação, Xenofobia e Opressão, em função do levante de Soweto, na África do Sul, quando a África do Sul ainda estava sob o regime de apartheid, e aqueles brancos holandeses e sul-africanos mataram estudantes secundaristas queimando pneus nos seus pescoços. E no Brasil, e na Bahia, não ocorre diferente.
Entramos no mês de março, e no dia primeiro a polícia truculenta do estado da Bahia, invadiu a Gamboa de Baixo e mata três jovens na sua plena fase de desenvolvimento. E no dia 2 de março, na tal “ação contra criminosos” — eu não sei quem são os criminosos de quem eles estão falando, porque a polícia da Bahia é uma polícia criminosa, ela mata as pessoas negras, porque branco na Bahia não morre! — e nessa tal dessa caçada aos chamados assassinos, mais dois foram mortos. Então, no terceiro dia do mês já tínhamos cinco mortos. Todos mortos pelo estado. Fora os que a notícia ainda não chegou na televisão. Então é bom ressaltar que o março para nós, mulheres negras, chama-se Março de Lutas, porque tem um significado marcante de datas que têm a ver com o nosso processo de opressão.
Nos últimos anos, temos visto o florescimento do feminismo negro no país e no mundo. Qual a importância de fazer esse recorte de raça no âmbito das lutas feministas?
É a luta, como eu falei pra você, de resistência e de reconhecimento de que nós mulheres negras estamos incidindo politicamente desde que chegamos aqui, desde que fomos trazidas para cá nos porões dos navios. Se a gente for se debruçar sobre a história da Bahia, do Rio de Janeiro, das Minas Gerais, do nordeste, nós vamos encontrar reações e posicionamentos de mulheres negras, algumas em condição de escravização, outras já com sua carta de alforria comprada por elas próprias, reagindo ao modelo vigente na época e também às formas de opressão e aos abusos, seja do Estado, seja das instituições públicas, seja dos seus companheiros.
Então vale destacar que o que o Feminismo Negro faz hoje no Brasil e no mundo é colocar luz, chamar atenção que não é possível nada sem nós. E que as nossas agendas se diferenciam, porque elas são fruto do território, da identidade e do pertencimento humano ao qual nós estamos vinculadas. Então, não são as mesmas lutas. Quando se fala no Brasil de democracia: democracia para quem? Quem vive em democracia?Quando as pessoas querem chamar nossa atenção para as guerras que estão ocorrendo fora, nós afirmamos: a guerra no Brasil é contra os negros.
Nós nunca estivemos num estado de paz, sempre vivemos num estado de guerra. Então, o feminismo negro vem botar luz nessas lutas, vem dizer que não vai ser possível revolução nesse país, não vai ser possível mudança nesse país se as mulheres negras não estiverem conduzindo esses processos. Como diz Angela Davis, e vocês devem conhecer demais esse dito dela, “quando as mulheres negras se movimentam, elas movimentam o mundo”.
Valdecir, lá no século XIX, os movimentos de mulheres estavam muito concentrados aqui no nordeste e também no norte. Atualmente, a gente vê essa centralidade deslocada lá para o sudeste/sul. Qual o papel de organizações e movimentos, como o próprio Instituto Odara, nessa descentralização geográfica, de trazer espaços para as pautas regionais também? Por que é importante falar de pautas a partir dessa perspectiva regionalizada?
Não mudou o eixo da luta feminista do nordeste para o sudeste. O sudeste dá mais visibilidade à luta feminista do que o nordeste. Nós, por exemplo temos no nordeste a Rede de Mulheres Negras do Nordeste, que promove todos os anos o Julho das Pretas, que hoje é uma ação nacional. Mas que a criação é aqui da Bahia, do [Instituto] Odara, que a gente expandiu pelo nordeste. Nós aqui no nordeste conseguimos chamar a governadora de João Pessoa e a vice-governadora do Piauí para discutir com a gente, no Julho das Pretas, estratégias de a gente participar do Consórcio do Nordeste para definir prioridades e para reincidir na redução de danos sobre as populações do nordeste e mais investimentos em educação, em tecnologia, acesso à riqueza no nordeste.
O nordeste é uma das regiões do país onde você tem mais Ouvidoria Externa da Defensoria Pública na mão dos movimentos sociais, resultado da incidência política das mulheres, particularmente das mulheres negras. Nós temos a organização das mulheres pescadoras e marisqueiras. As pescadoras e marisqueiras do Brasil se organizam a partir das pescadoras e marisqueiras do estado da Bahia. Nós temos as trabalhadoras rurais organizadas, nós temos a Marcha das Margaridas que sai do nordeste do Brasil.
Nós também temos uma incidência extremamente valorosa nesse processo eleição mandatos de coletivas de mulheres, é o nordeste que mais se destaca, que mais elege mandatos coletivos. É que o sudeste do país é que tem mais visibilidade, porque o recurso destinado às organizações e aos movimentos sociais no sudeste é maior do que o que é destinado ao nordeste. Nós continuamos com uma divisão de recurso e de riqueza que expropria, explora e exclui a região nordeste. Nós do nordeste avançamos no diálogo com o Ministério Público em relação ao racismo estrutural, ao racismo institucional muito mais do que qualquer estado do sudeste. Com toda fragilidade, nós temos políticas de enfrentamento à violência contra a mulher muito mais estruturadas. Nós temos um histórico de incidência em redes e estratégias no âmbito da violência contra mulher muito mais antigo do que tem no sul e sudeste.
Fonte: BdF Bahia
Edição: Elen Carvalho e Thales Schmidt