Coluna

14 de março: resistir às barragens e construir um modelo energético popular

Imagem de perfil do Colunistaesd
A celebração começou em 1997, quando representantes de populações atingidas de 20 países se reuniram para o I Encontro Internacional de Atingidos por Barragem - Thais Gobbo
Toda essa cadeia de produção conectada à barragem cria violações no entorno desses empreendimentos

No dia 14 de março é celebrado o Dia Internacional de Luta contra as Barragens, em defesa dos rios, das águas e da vida. A celebração começou em 1997, quando representantes de populações atingidas de 20 países se reuniram para o I Encontro Internacional de Atingidos por Barragem, em Curitiba (PR). O dia de ação foi construído como um chamado para unidade internacionalista frente às violações causadas pelo modelo energético na utilização de barragens para geração de energia elétrica, armazenamento de rejeitos de mineração e barramento de água. 

Nas palavras de Tatiane Paulino, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB): “É uma data importante para a gente lembrar desses sujeitos que vivem nesses territórios, de denunciar toda violação a qual a gente vive e também de anunciar que nós estamos vivos, nós estamos organizados e que nós vamos continuar resistindo a esse modelo depredador, que só privilegia o capital em detrimento das vidas dos que vivem nesses territórios”.

A realidade invisível dos atingidos e das atingidas

Segundo relatório da Comissão Mundial de Barragens (2000), entre 40 e 80 milhões de pessoas foram deslocadas fisicamente para construção de barragens no mundo. Muitas dessas populações são retiradas de seus territórios em processos violentos, sem o pagamento de indenizações prévias e justas, sem acesso à informação. Esse deslocamento compulsório afeta os laços comunitários e culturais, quebrando importantes teias sociais para a manutenção da reprodução da vida. 

Há uma ausência de estudos aprofundados dos impactos ambientais, sobretudo na perspectiva das mudanças que ocorrem no ecossistema após a construção da barragem, aponta a Comissão. No Brasil, é conhecido o caso da barragem de Tucuruí, no estado do Pará, na qual o lago foi construído sem a retirada da floresta, que ficou submersa, causando a proliferação de mosquitos e a mudança na fauna aquática. Ou ainda, as grandes barragens em Rondônia, responsáveis por alterações no regime de chuvas,  reprodução dos peixes e elevação do lençol freático.

As obras mais recentes de barragem têm se concentrado em zonas de biodiversidade, como na Amazônia, região em que os impactos são ainda mais profundos. Cleidiane Vieira, militante do MAB, argumenta que “as barragens historicamente vêm causando diversas violações aos direitos humanos e ambientais, porém  quando acontece na região Amazônica, esses impactos são potencializados, os impactos praticamente triplicam, visto as drásticas mudanças socioambientais e metabólicas no bioma”. Ela também chama atenção que as hidrelétricas nunca vêm sozinhas. “Assim como outros projetos de infraestruturas, como hidrovias, ferrovias, as hidrelétricas geralmente vêm acompanhadas de outros projetos como os de mineração, o garimpo ilegal, grilagens de terra”, menciona Cleidiane. 

Toda essa cadeia de produção conectada à barragem cria no entorno desses empreendimentos violações não dimensionadas como a prostituição, o aumento da violência doméstica, a especulação imobiliária e falta de acesso a serviços públicos, atingindo as mulheres de forma desigual. Essa triste realidade levou algumas organizações a chamarem esses territórios de “zonas de sacrifício”.


Arpillera bordada por mulheres traz cenas que convergem e criam as condições para que a participação feminina seja real / Vinícius Denadai/ Acervo do MAB

Tem sido um desafio, para os movimentos populares, o reconhecimento desses impactos. Isso porque o Estado e as empresas assumem uma postura tecnicista, considerando esses danos, sociais e ambientais, como elementos externos ao empreendimento, e não consequências diretas de sua existência. Não é à toa que uma das primeiras pautas de luta dos atingidos e das atingidas é o seu reconhecimento como tal.  

A luta pelo reconhecimento dos direitos das populações atingidas

Em 2009, o ex-presidente Lula reconheceu que no Brasil há uma dívida social histórica com as populações atingidas por barragens, e sancionou o decreto criando o Comitê Interministerial de Cadastramento Socioeconômico das populações atingidas. Em 2014, o Instituto Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) desenvolveu uma metodologia de diagnóstico do passivo social de barragens, aplicada apenas no caso de Sobradinho (BA). 

Além dessas iniciativas, não há outros avanços em marcos regulatórios protetivos dos direitos das populações atingidas, ou mesmo da responsabilização de empresas transnacionais por violações aos direitos humanos. Desde 2013 o MAB reivindica a criação de uma Política Nacional dos Atingidos por Barragem (PNAB), na qual se incluía um capítulo sobre o passivo social de barragens por meio do incentivo a programas de desenvolvimento local. Em 2019, após a tragédia criminosa da barragem de rejeitos de mineração em Brumadinho, em Minas Gerais, passou a tramitar o Projeto de Lei nº. 2788/2019 que prevê a criação da PNAB. 

Se olharmos para o plano do programa energético brasileiro não encontramos menção à situação das populações atingidas. Os programas estão limitados a uma abordagem tecnicista sobre diversificação da matriz energética. Tanto o Programa Nacional de Energia (PNE), como o Programa Decenal de Expansão de Energia 2030, refletem o discurso de grandes corporações da transição energética de “baixo carbono”.  

Em razão disso, os planos de governo envolvem expansão do parque de eólicas para região nordeste; investimentos em pequenas centrais hidrelétricas no sul do brasil; expansão da fronteira agrícola para produção de biomassa; grandes hidrelétricas na região norte. Tais fontes são consideradas "energia limpa", pela ótica da economia verde, no entanto são causadores de inúmeros deslocamentos e desequilíbrios ambientais. Dessa forma, são falsas soluções que seguem gerando lucros com a destruição, em projetos realizados sem a participação popular, como já vêm denunciando os movimentos por justiça ambiental nas últimas duas décadas. 


População arca com o aumento nos preços das tarifas enquanto empresas do setor privado aumentam seus lucros / Crédito: Rafael Zãn

Para se efetivarem, esses programas de governo exigem mudanças legislativas, sobretudo no licenciamento ambiental, as quais vêm sendo apresentadas para ampliar o controle de corporações no setor. Em entrevista à Amigos da Terra, a militante da Marcha Mundial de Mulheres (MMM), Gabriela Cunha, destaca que o processo de ampliação do poder corporativo no setor se dá pela retirada do papel do Estado na coordenação e condução da política energética, sobretudo por meio das alterações nos marcos regulatórios e nas legislações, a favor de uma expansão na produção e no consumo de energia que privilegia o setor privado, prejudicando a população em geral que arca com o aumento nos preços das tarifas. “Vimos essas alterações regulatórias acontecendo por processo não democráticos, sendo a maioria tramitando em regime de urgência na Câmara de Deputados ou no Senado, a exemplo da lei que permite a privatização da Eletrobras”, disse ela.

Num momento de construção de novos programas de governo no Brasil, que possam superar a condição antidemocrática vigente desde o golpe de 2016, é urgente repensar o modelo energético, fugindo das armadilhas do tecnicismo e inserindo a energia no debate político e democrático. A pesquisadora Gabriela Cunha destaca a necessidade de uma articulação política “entre diferentes setores, de forma popular e participativa" para reposicionar o debate à luz de uma visão “ampliada de sustentabilidade e das tecnologias”. Pensar a energia como um direito é uma das propostas de uma transição energética justa e democrática, que se coloca em oposição à noção hegemônica da energia como uma mercadoria, sem considerar os impactos nos territórios. 

Resistências na construção de propostas emancipatórias

Assim, contra essa lógica da energia mercadoria, povos e comunidades estão organizados a partir de seus territórios na construção da resistência às barragens e na luta pela vida. Essa força social está presente na carta enviada ao Primeiro-Ministro Indiano pelos camponeses adivasi de Jalsindhi, em 1994, em apelo pela não construção da barragem de Sardar Sarovar, quando dizem “nós nos afogaremos, mas não iremos nos mover”, “somos gente da margem do rio”. Da mesma forma ecoa, no Brasil, os gritos de ordem do MAB: “Terra sim, barragem não!”, “Águas para vida, não para a morte”. E na constituição do Movimento de Atingidos por Represa (MAR) em toda a América Latina.

O dia 14 de março como uma data de luta internacional tem como proposta construir uma união de vozes contra os projetos de desenvolvimento que destroem as águas, a saúde e a vida das pessoas. Essa unidade internacional demonstra que o problema da democratização energética e da construção de um modelo de transição justa passa pelo reconhecimento de que estamos sendo todos e todas atingidos e atingidas pelo modelo energético. Dessa maneira, nos unimos à convocatória dos movimentos para a construção de um modelo energético com controle popular, que assegure justiça socioambiental e com distribuição de riquezas que ponha no centro a vida e os direitos dos povos. 

 

*Os depoimentos presentes neste artigo foram colhidos em entrevistas concedidas à Amigos da Terra Brasil.

**Amigos da Terra Brasil (ATBr) é uma organização que atua na construção da luta por Justiça Ambiental. Quinzenalmente às segundas-feiras, publicamos artigos sobre justiça econômica e climática, soberania alimentar, biodiversidade, solidariedade internacionalista e contra as opressões. Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

 

 

Edição: Vivian Virissimo