Na ficção, a Kryptonita é o único material capaz de deter o Super-Homem, um dos mais populares heróis estadunidenses. Para não repetir o enredo na vida real e também ver a cripto(moeda) como seu calcanhar de Aquiles, os Estados Unidos querem reivindicar sua liderança no sistema financeiro digital.
A mais recente movimentação nesse sentido por parte da Casa Branca veio na semana passada, quando o presidente Joe Biden assinou uma ordem executiva para que as autoridades de seu país investiguem de maneira detalhada os possíveis impactos de uma criação de uma moeda digital dos Estados Unidos.
"Os americanos sabem muito bem que precisam agir rápido ou então vão perder a hegemonia mundial, sobretudo porque a China está uns 5 ou 7 anos a frente do resto do mundo quando se trata de criptomoeda emitida por um Banco Central", diz o especialista Henri Arslanian, líder da consultoria PwC Global Crypto. "Joe Biden deixou muito claro que ele quer que os Estados Unidos sejam um player global e mantenham a liderança que acredita que os Estados Unidos têm agora. Ele realmente quer que os EUA desempenhem um papel dominante quando se trata da conversa e governança global de criptomoedas".
Não chega a ser coincidência, portanto, o timing dessa novidade. Desde que os países do Ocidente excluíram a Rússia do sistema financeiro internacional, o Swift, como parte das sanções impostas pela invasão à Ucrânia, a discussão sobre a regulamentação do dinheiro digital ganhou mais fôlego.
"É importante que as pessoas saibam que é impossível parar o bitcoin e outras moedas. Veja, há muitos mecanismos de controle, e inclusive uma lista de indivíduos sancionados, mas isso só previne grandes transações, não uma pequena quantia que um amigo quer enviar a outro", explica Arslanian à reportagem do Brasil de Fato. "O ecossistema de criptomoedas é um pouco como a internet, você pode tentar parar as coisas aqui e ali, mas não pode pará-lo de forma mais holística".
É por isso que as criptomoedas estão desempenhando um papel central neste conflito. Os russos podem, em parte, driblar as sanções que lhes foram impostas, mas a Ucrânia também vem utilizando a moeda digital para a compra de munições e suprimentos.
De acordo com um relatório publicado pela CNBC, uma soma superior a US$ 4 milhões, cerca de R$ 20,3 milhões, em criptomoedas foi investida no Exército ucraniano desde a invasão pela Rússia.
O problema é que, da forma como o setor se desenvolve, ele tende a reforçar a liderança dos Estados Unidos. "Uma das coisas que muitas vezes as pessoas não percebem é que o ecossistema de criptomoedas, em sua grande maioria, ainda opera em dólares americanos. Por exemplo, hoje, cerca de 95% das transações criptográficas — que chamamos de 'pares de negociação' — , têm como parâmetro o dólar", continua o especialista.
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A moeda dos Estados Unidos já serve de lastro para o comércio internacional, de forma que costumamos negociar os bens em dólares. É por isso que as notícias sobre o aumento da gasolina, por exemplo, trazem os valores do barril de petróleo na moeda dos EUA — porque é assim que as coisas funcionam.
Caso leve a cabo a sua missão de criar uma moeda digital controlada pelo seu Banco Central, os Estados Unidos têm boas chances de replicar sua hegemonia, e isso pode ser prejudicial para países em desenvolvimento.
"Se ficar mais fácil, por exemplo, alguém enviar valor entre Brasil e Estados Unidos usando moedas estáveis em dólar, isso pode prejudicar o papel das moedas locais. É algo que os Bancos Centrais estão muito cientes", alerta Arslanian. "É por isso que temos visto iniciativas variadas tentando agir junto com os Banco Centrais, porque é preciso garantir que existam outras moedas fortes afim de não permitir a dolarização da economia".
O especialista cita iniciativas como a de Palau e El Salvador como exemplo. O governo de El Salvador passou a aceitar o Bitcoin como uma moeda oficial, sendo um dos primeiros a fazê-lo. "Quando El Salvador reconheceu o Bitcoin como moeda legal, obviamente houve muitas críticas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, o FMI, que ironicamente são as duas organizações que foram criadas em 1944, durante as reuniões de Bretton Woods, que colocaram o dólar americano como moeda de reserva do mundo", crítica Arslanian.
Por conta da rastreabilidade, as moedas digitais também seriam, na opinião de Arslanian, uma excelente maneira de combater a corrupção, a lavagem de dinheiro e a evasão fiscal.
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"Pensando na administração pública, as criptomoedas têm muitas vantagens, mas as pessoas precisam saber que existe um preço para isso, e talvez elas tenham que sacrificar um pouco mais de sua privacidade em nome do bem comum", pondera ele.
Levando em consideração o histórico de vigilância e espionagem praticadas pelos Estados Unidos na política internacional, há motivos para se preocupar com a Casa Branca lidando com tantos dados da economia mundial. Essa conta pode sair cara a todos nós.
Edição: Thales Schmidt