Após dois anos do governo de Alberto Fernández, a Argentina não conseguiu resolver o problema da inflação (53% ao ano), carrega uma dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), contraída por Mauricio Macri, e tem uma situação política bem instável, o que afeta a Frente de Todos, a coalizão governista.
Máximo Kirchner, filho de Cristina Kirchner e do falecido Néstor Kirchner, ambos já ocupantes da presidência, se demitiu da chefia da bancada governista após Alberto enviar ao Congresso o acordo com o FMI para aprovação. No dia da votação, manifestantes atacaram com pedras o escritório de Cristina, hoje a atual vice-presidenta do Senado.
Lideranças políticas criticaram o fato de o governo não repudiar o ataque imediatamente. A porta-voz do presidente disse que Alberto enviou mensagem para a vice-presidenta, mas que ela não respondeu.
Cristina romperá a aliança política que ela mesma criou?
“Na política, o mais estúpido que existe é aquele que quer escolher só o que gosta. A política é o meio, o fim é chegar ao governo, todo esse meio é um processo quantitativo, já que, na quantidade, o voto do bom, do mau, do rico, do pobre, do sábio, do ignorante na urna vale um. O que tem que fazer é encher as urnas, logicamente tem que pegar voto de todo mundo, do bom, do mau, do rico, do pobre e do ignorante. Aquele que só quer levar os bons, chega com pouquíssimos e com pouquíssimos na política nada se faz”, disse Perón em uma entrevista de 1972 na Espanha, após 17 anos de exílio. O tempo passou, mas essa lógica continua presente no movimento e foi o que possibilitou tirar Macri do governo.
Em 2019, Cristina surpreendeu a todos quando anunciou que não seria candidata à presidência, e que tinha escolhido Alberto como cabeça da chapa. Ela seria candidata a vice-presidenta. Isso tendo ela a maior intenção de votos da oposição à Macri e a maior liderança popular nacional. As pesquisas, no entanto, mostravam que os votos não seriam suficientes para vencer. Já Alberto tinha sido Chefe de Gabinete de Ministros de Néstor Kirchner, e também de Cristina até o momento em que ela confrontou os ruralistas em 2008. A então presidenta perdeu a votação que aumentaria os impostos da soja no Congresso, e Alberto sai do governo. Quem assume seu lugar na época é Sergio Massa.
Após a briga com os ruralistas, a Argentina ficou dividida. Nas eleições para deputado de 2009, Nestór Kirchner foi candidato, mas perdeu para Francisco de Narváez, um colombiano naturalizado argentino, dono de supermercado, que teve todo o apoio da mídia.
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O kirchnerismo radicalizou a política argentina, e nem todos os dirigentes peronistas acompanharam esse processo. Uma semana após a derrota de Néstor para deputado, em 2009, Massa foi demitido. Em 2011, ele foi eleito prefeito de Tigre, ainda como membro do kirchenrismo. Mas, em 2013, ele cria uma aliança peronista não-kirchnerista, a Frente Renovadora, com a qual ganha as eleições para deputado, vencendo o kirchnerismo. Em 2015, Massa acreditava na terceira via e se lança candidato a presidente. Teve 21% dos votos. Daniel Scioli, o candidato kirchnerista, teve 37%. Quem venceu foi Macri, com 51,4% dos votos no segundo turno. Massa não chamou votos para Scioli.
Todos unidos triunfaremos
O sistema eleitoral argentino prevê a realização de prévias para a escolha dos candidatos de cada partido nas eleições, é a Primária Aberta Simultânea e Obrigatória (Paso). Em 2017, Cristina Fernández não quis disputar as eleições internas dentro do peronismo, por isso criou um partido novo, a Unidade Cidadã. Foi candidata a senadora pelo estado de Buenos Aires, obtendo 37% dos votos. Buenos Aires representa exatamente 37% do eleitorado do país.
Por isso, tanto Alberto Fernández quanto Sergio Massa perceberam que para vencer Macri precisavam fazer uma aliança com ela. A “Marcha Peronista”, hino do movimento, diz “Todos unidos triunfaremos”. Alberto, que fora chefe de campanha de Massa em 2013 e 2017, entendeu que “sem Cristina é impossível, mas só com ela não é suficiente”. Assim foi possível construir a Frente de Todos, que ganhou as eleições em 2019 e colocou Alberto na presidência.
Quando Cristina deixou a presidência (2017), teve uma despedida na Praça de Maio com mais de um milhão de pessoas. Quando voltou como vice-presidenta, também com a praça lotada, disse para Alberto que quando duvidasse do que devia fazer, que ouvisse o povo, porque o povo nunca trai os dirigentes que não o abandonam.
Após 99 dias de governo, começou a pandemia. O governo argentino decretou isolamento obrigatório, repassou recursos para os trabalhadores informais, implementou políticas para promover o emprego e garantiu vacinas. Por isso, Alberto estava convencido que conseguiria bons resultados nas eleições legislativas de novembro de 2021. Não conseguiu.
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No meio da campanha, Cristina criticou o governo, disse que existiam ministros e ministras que não funcionavam, e pediu que quem tivesse medo da mídia, que procurasse outro emprego. Após a derrota eleitoral, Cristina publicou uma nota dizendo: eu avisei.
Quem manda?
Quando Néstor Kirchner indicou Cristina como candidata em 2007, a mídia dizia que ele na verdade governaria. Quando Cristina escolheu Alberto, a mídia novamente disse que não seria o presidente quem mandaria, mas a realidade prova o quão errada a mídia está.
Cristina, em uma das cartas que publicou com críticas à política econômica do governo, disse que quem manda é o presidente. Durante a campanha para as eleições do Congresso em 2021, Máximo Kirchner, então chefe da bancada governista, lembrou ao presidente que 37% dos votos eram de Cristina, incentivando que o governo escutasse o que ela tinha para dizer.
Hoje, enquanto 40% da população argentina está na pobreza e a inflação chega a 53%, as principais lideranças da coalizão do governo não param de mostrar as diferenças em público.
O acordo do governo argentino com o FMI fez com que Máximo Kirchner se demitisse da chefia da bancada. O deputado manifestou que não concordava com a forma como foram feitas as negociações. Deputados e senadores ligados à Cristina votaram contra o acordo, ou se abstiveram.
O governo conseguiu aprovar o acordo com o apoio da oposição, que foi quem contraiu a dívida. A proposta do kirchnerismo não era deixar de pagar e deixar o país entrar em default, mas a corrente considera que os prazos do pagamento deviam ser maiores, levando em conta que o próprio FMI reconheceu que deu o empréstimo para Macri ganhar as eleições, violando as normativas do organismo. Após a saída de Máximo, a pergunta é: Cristina romperá com Alberto?
De diversos setores da Frente de Todos chegam pedidos para manutenção da unidade. Cristina parece não conversar com o presidente. A Argentina terá eleições presidenciais no próximo ano e Alberto já disse que o melhor será que a Frente escolha a próxima candidatura nas eleições primárias, coisa que nunca aconteceu dentro do kirchnerismo. Romperá Cristina abertamente com Alberto, e lançará um novo candidato dentro do seu espaço, ou será ela mais uma vez candidata? Essas são só especulações, mas não resta dúvidas de que a briga pública dentro da coalização só debilita o governo, enquanto a população continua com dificuldades para comprar alimentos.
* Santiago Gómez é editor da seção de Internacional da Agência Paco Urondo.
Edição: Arturo Hartmann e Thales Schmidt