Coluna

A voz da cana

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Um dia, andando por uma estrada que cortava um canavial, parou para apanhar umas canas - Creative Commons
Levaram o Cinzeiro para a delegacia como se ele tivesse cometido um crime gravíssimo

Tem uma história que acho que já contei aqui há muito tempo, mas conto de novo, porque um amigo que veio da França me fez lembrar dela.

Tomar banho todos os dias é um hábito que não existe em alguns países da Europa. Toma-se banho no máximo uma vez por semana, e no inverno esse prazo se prolonga...

Um amigo meu que foi estudar na Alemanha tomava banho todos os dias, e seus colegas de moradia achavam que ele tinha alguma doença de pele.

Outro foi morar em Roma por um período de seis meses e, daqui, entrou em contato com uma pensão romana, pra ir com moradia garantida. Mas lá, para morar na pensão, precisava antes assinar um contrato com seus direitos e deveres.

Entre seus direitos, havia o de tomar um banho por semana. Pensou em desistir. Perguntei quantas pessoas moravam na pensão e de onde eles eram. Eram vários, quase todos alemães e franceses.

Aconselhei: pode topar. Esses caras não vão usar o direito que têm de tomar um banho semanal, e passam esse direito pra você. Meio cismado, ele foi. Ele me escreveu uma carta dizendo que funcionou. Tomava pelo menos três banhos por semana.

E me lembrei de um sujeito que andava vagando de cidade em cidade, na região do Cariri cearense. O apelido dele era Cinzeiro. Segundo diziam, o cara só tinha tomado um banho na vida.

O Cinzeiro não tinha moradia certa, vivia andando entre uma cidade e outra e era conhecido em todas as pequenas cidades da região. Um dia, andando por uma estrada que cortava um canavial, parou para apanhar umas canas. Foi pego pelo proprietário, que resolveu fazer uma gozação, com a cumplicidade do delegado da cidade mais próxima.

Levaram o Cinzeiro para a delegacia como se ele tivesse cometido um crime gravíssimo, e ele se defendia dizendo que apenas atendeu ao chamado das canas:

— Eu tava na estrada, elas ficavam gritando: “Me panha, me chupa”...

Como castigo, deram um banho no Cinzeiro. Esse que foi o único da sua vida. Ficou resfriado e quase morreu.

A partir dessa história passei a brincar com os amigos imitando o Cinzeiro. De vez em quando fazia de conta que estava ouvindo alguma coisa que ninguém mais ouvia, e falava: “É uma voz vinda de uma garrafa... Ela está gritando: me abre, me bebe”, e já sabiam que estava propondo ir ao boteco beber cerveja.

 

*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Daniel Lamir