Inundações, secas, escassez de água, incêndios e deslizamentos. Por todos os cantos do mundo, pessoas têm sofrido impactos relacionados às mudanças climáticas, que infelizmente, trazem consequências ainda mais graves para as crianças. Segundo o Índice de Risco Climático das Crianças (CCRI), publicado pelo UNICEF em agosto de 2021, praticamente todas as crianças da Terra estão expostas a pelo menos um risco climático e ambiental. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma a cada quatro mortes de crianças com menos de um ano estão associadas a riscos ambientais.
Cientistas e pesquisadores do CCRI analisaram evidências globais de como a crise climática é também uma crise dos direitos das crianças, já que afeta sua saúde de maneira direta, ao aumentar a mortalidade devido a doenças, calor e desastres - e indireta, quando tira delas a possibilidade de ter uma vida saudável, com acesso à educação, bem-estar e nutrição, em um planeta habitável.
Todos no mesmo mar, mas em barcos diferentes
Para se ter uma noção, uma a cada sete crianças ao redor do mundo está suscetível a inundações fluviais. Em relação à poluição do ar, 2 bilhões de crianças (quase 90% das crianças no mundo) estão altamente expostas a níveis mais altos que 10µg/m3.
O documento da UNICEF alerta para um ciclo vicioso no qual as crianças em situações de vulnerabilidades social são as mais afetadas pelos perigos climáticos e ambientais. Estes, por sua vez, vão se sobrepondo e dificultando o acesso dos pequenos à nutrição adequada e outros serviços essenciais. Isso interfere na capacidade de resiliência e adaptabilidade, o que consequentemente empurra as crianças ainda mais fundo em situações de pobreza.
Existe luz no fim do túnel?
Temos o hábito de reproduzir aquele discurso de que as crianças são o futuro do nosso planeta, mas quando jovens ativistas como Greta Thunberg ousam falar sobre fatos, a sociedade reage com hostilidade e desaprovação.
E a verdade é aquilo que a jovem já cansou de explicar. A única solução a longo prazo é reduzir as emissões de gases de efeito estufa pela metade até 2030 e a zero até 2050. Índices que dependem de uma transformação do nosso modelo econômico, hoje baseado na exploração de combustíveis fósseis. Ou seja, é necessário contar com compromissos de empresas, leis, políticas públicas e acordos internacionais.
No âmbito público, também existem outras ações que reduzem a exposição de crianças a vulnerabilidades e que podem reduzir seu nível geral de risco climático, como por exemplo investir no acesso a proteção social e redução de pobreza, acesso a serviços de saúde e nutrição, melhoria no acesso e desempenho escolar, e ações afirmativas de inclusão e equidade.
Para atravessar 2022 com os pés no presente e os olhos para o futuro, separamos alguns temas, eventos e atitudes que podem ajudar a nos organizar coletivamente, pressionar governantes e a mudar hábitos:
De olho nas eleições gerais
Mais do que nunca é hora de ficar de olho nos projetos, propostas e políticas públicas que dialoguem com a infância, o direito de brincar e a preservação da natureza. Criança é prioridade absoluta e candidatos e candidatas devem assumir compromissos públicos com a infância e o meio ambiente.
COP27, RIO+30 e Cúpula dos Povos
Alguns grandes eventos debaterão a questão ambiental no Brasil e no mundo, em 2022. Entre eles a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP27), que acontecerá no Egito, e a Rio+30, em junho, no Rio de Janeiro.
A Rio+30 acontece desde 1992 e discute o papel dos grandes centros urbanos nas mudanças climáticas mundiais. Ainda não se sabe quais autoridades políticas irão participar do evento, mas algumas das pautas definidas devem ser: compromissos climáticos de governos locais, sistemas alimentares urbanos, empregos e economia verde, além de resiliência e justiça climática. Neste contexto,é fundamental que a infância permeie todos estes temas durante a construção de debates e propostas de ações de olho no futuro.
Paralelo à Rio+30, acontecerá, também, a Conferência Internacional das Cidades para o Desenvolvimento Sustentável - ou Cúpula dos Povos, com a participação de dezenas de organizações civis que pautarão temas como crise climática, desigualdade social, perda da biodiversidade, desequilíbrio dos ciclos bioquímicos, desestabilização do uso do solo, poluição e emergência hídrica. Outro evento para acompanhar e cobrar que compromissos firmados também posicionem, em diálogo com estes temas, a infância em primeiro lugar.
Movimentos populares e coletivos
Há inúmeras iniciativas que debatem causas sociais como o direito à educação, saúde, moradia, mobilidade urbana, entre outros. Que tal refletir qual a participação das crianças nestas ações coletivas, não só como tema norteador de lutas sociais mas também sua participação ativa, como sujeito de direitos? Entre os exemplos para se inspirar estão as crianças do movimento sem-terrinha que, desde pequenas, aprendem a vivenciar a busca pelo direito à terra, escola, saúde, por comida sem veneno, entre outros.
A importância do brincar em espaços verdes seguros
O contato das crianças com a natureza caiu muito durante a pandemia. Uma pesquisa idealizada pelo programa Criança e Natureza em parceria com a Fundação Bernard Van Leer e o WWF-Brasil entrevistou famílias com crianças de até 12 anos em todo o Brasil e apontou que 42% dos entrevistados não têm uma área verde adequada próximo de sua casa. Por outro lado, 75% dos participantes pretendem levar as crianças mais vezes para praças e parques, já que, durante a pandemia, perceberam os benefícios que esse contato com a natureza pode trazer para as crianças. Veja outros dados levantados e dicas para incluir mais natureza no dia-a-dia, nas escolas e nas cidades, na pesquisa 'O Papel da Natureza para a Saúde das Crianças no Pós-Pandemia'.
A cidade e o brincar
Com foco na valorização do brincar como um pilar do desenvolvimento infantil, a Aliança Pela Infância e Movimento Unidos Pelo Brincar têm mobilizado cidadãos e gestores públicos para instituir a Semana Mundial do Brincar como parte do calendário oficial dos municípios brasileiros. Para isso, lançaram em setembro de 2021 um guia com um passo a passo de como reivindicar junto aos governos locais que a Semana Municipal do Brincar seja instituída como lei. O guia está disponível no site semanadobrincar.org.br, onde há, também, materiais (formulários, documentos, dados) de suporte para as solicitações ao poder público. Também é possível baixá-lo aqui. Nesta perspectiva, o brincar como um direito assegurado nas políticas públicas municipais pode ser, também, uma forma de explorar espaços verdes seguros, onde as crianças possam habitar, brincar e se relacionar com a terra.
Escuta e participação
É comum a percepção de que crianças não devem ser incluídas em decisões que afetem diretamente bairros e cidades. Mas felizmente, este olhar vem sendo transformado, como no caso de alguns municípios brasileiros que estão implantando sistemas de escuta de crianças no desenvolvimento de políticas públicas.
Entre os exemplos está Benevides (PA), onde a Secretaria Municipal de Educação reuniu alunos da Rede Municipal de Ensino para dialogar sobre as percepções das crianças acerca da cidade a partir do momento em que elas saem de casa e vão para a rua, contribuindo na elaboração de um plano de mobilidade para a cidade.
Ou ainda a cidade de Caruaru (PE), onde crianças foram chamadas pela prefeitura para contribuir no processo de requalificação do entorno das escolas próximas à Via Parque (como aborda o artigo “Escuta de crianças fortalece participação social nas cidades”). Esta é uma estratégia inteligente, pois além de trazer olhares reais sobre as necessidades que as impactam,contribui na formação cidadã.
Mudança de hábitos
“Um passo à frente e você já não está no mesmo lugar”. A frase de Chico Science é um lembrete de que toda atitude, por menor que seja, vale a pena. Criar hábitos mais sustentáveis em casa e na rotina é uma maneira de difundir e naturalizar um modo de vida mais harmonioso com o planeta.
Dados da ABRELPE apontam que são produzidas 78 milhões de toneladas de lixo no Brasil. Evitar produtos com embalagens descartáveis, fazer a separação correta do lixo e manter uma composteira são formas mais conscientes de se relacionar com os resíduos que produzimos.
Uma forma visual e didática de avaliar se sua rotina poderia causar menos dano ao planeta são as calculadoras de impacto, que mostram o uso de energia elétrica e água, as emissões de gases de efeito estufa e o espaço poupado em lixões e aterros sanitários.
É interessante que as mudanças aconteçam de maneira gradual, contínua e divertida, afinal tudo aquilo que é prazeroso é mais fácil de ser sustentado a longo prazo. As crianças podem estar sempre envolvidas nessas tarefas, aos poucos compreendendo o porquê da bicicleta ser mais sustentável que o carro, ou porque é interessante reduzir o consumo de alimentos de origem animal, por exemplo. Viver de maneira mais sustentável é compreender as relações e o impacto de cada escolha.
Comentário Geral 26 da ONU
O Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas está preparando um Comentário Geral sobre os Direitos da Criança e do Meio Ambiente, com foco especial nas Mudanças Climáticas (Comentário Geral Nº 26).
Comentário Geral é um tipo de instrumento usado pelas Nações Unidas para aplicação de convenções internacionais. Ele servirá como um guia oficial sobre o que os governos deverão fazer para defender que as crianças vivam em um mundo limpo, verde, saudável e sustentável.
Para a elaboração do Comentário Geral Nº 26, o Cômite criado pela ONU está realizando consultas específicas com crianças e jovens, para ouvi-los diretamente. Além disso, até 2023, organizará uma série de consultas e workshops, online e offline, com pessoas de todo o mundo.
O Comitê também está trabalhando com uma equipe de assessores, de diferentes idades e experiências, para orientá-los na elaboração do Comentário Geral. No Brasil, entre as organizações que estão colaborando com a construção deste processo está a terre des hommes (tdh A), uma organização que tem a missão de promover, garantir e defender os direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Para acompanhar a construção do Comentário Geral Nº 26, acesse aqui.
Para onde vamos?
É preciso que se faça um esforço coletivo, unindo as ações de pessoas com esforços governamentais, a fim de promover uma mudança efetiva nas relações que temos, crianças e adultos, com o ambiente em que vivemos.
Neste ano de 2022, ocorrerão eleições para presidente, governador e para os cargos dos Legislativos federal e estaduais. O país se debruçará sobre diversas pautas que afetam a vida dos brasileiros. Neste contexto, vale resgatar a leitura de Ailton Krenak, que, em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2020), critica a noção de humanidade como algo separado da natureza, uma "humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô".
Para Krenak, é importante viver a experiência da nossa própria presença no mundo não como uma metáfora, mas como algo real, de contato direto, onde possamos contar uns com os outros e não olhar para a natureza como um recurso ou algo que alguém possa se apropriar, mas sim parte da nossa construção como coletivo que “habita um lugar onde fomos gradualmente confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir nossas formas de organização”.
Daí a necessidade de imaginar e concretizar outro mundo possível, com a reflexão de qual é o mundo que estamos empacotando para deixar às gerações futuras e como podemos fomentar mais participação e engajamento social para que este mundo se realize.
*Tatiana Ribeiro é jornalista e educomunicadora. Atua na área da comunicação há 10 anos em temáticas como a valorização da gastronomia regional, infância, meio ambiente e educação. Trabalhou no SCFV (Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos da Assistência Social) de Londrina (PR). Estuda Pedagogia Para Liberdade (UnBF).
** Tatiana Oliveira é jornalista, atua na área de Direitos Humanos e integra o movimento Aliança pela Infância. Faz parte da Social Comunicação, agência que atende institutos, fundações, organizações não governamentais e movimentos sociais.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho