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Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira: luta contra a privatização é uma luta das mulheres

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Se o projeto de privatização pretende tirar as comunidades de seu território a partir da rearquitetura dos caminhos, é porque não contam com a capacidade de resistência e invenção dos povos - Fernando Martinho/Repórter Brasil
O parque é atualmente administrado pelo governo do Estado e foi colocado em um plano de concessões

Por Jéssica Pires, Natália Lobo, Miriam Nobre e Paula Daniel Fogaça*

 

Escrevemos este texto a muitas mãos, a partir de conversas e elaborações de mulheres que estão inseridas no território do Vale do Ribeira – entre as regiões Sudeste e Sul do Brasil – e que têm se dedicado a travar uma luta contra a concessão de um dos mais importantes parques da região: o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR).

O parque, que se localiza nos municípios de Iporanga e Apiaí, é atualmente é administrado pelo governo do Estado de São Paulo e foi colocado em um plano de concessões, junto à outras unidades de conservação, que permite que empresas privadas (nacionais ou internacionais) possam ganhar o direito de explorar comercialmente a parte do território onde estão concentradas as maiores atrações turísticas.

O Vale do Ribeira é a região do Brasil que abriga a maior porção do bioma Mata Atlântica, 70% preservada, além de abrigar uma variedade de comunidades e povos tradicionais, como os indígenas Guarani Mbyá e Guarani Ñandeva, comunidades quilombolas, caiçaras e caboclos. Enquanto o bioma foi destruído na maior parte do país por megaempreendimentos e pela especulação imobiliária, na no Vale do Ribeira a relação e a defesa da floresta praticada pelas comunidades da região contribuiu para sua manutenção.

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A política de conservação pensada para abrigar esta biodiversidade desde o século passado tem sido uma política ‘sem gente’, que instaurou muitos parques e unidades de conservação que restringem os modos de vida das comunidades do território. Só mais recentemente, através da luta, é que algumas áreas passaram a ser entendidas como áreas chamadas de unidades uso sustentável.

Estas unidades são um tipo de criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação do Brasil, que funcionariam sob um regime que tolera a presença das comunidades nos territórios.

Isto não se verifica inteiramente na prática, visto que mesmo nestes locais há muitos conflitos entre os modos de vida e as regras das Unidades de Conservação. Via de regra, a forma como a questão ambiental e fundiária são resolvidas no Vale do Ribeira é sempre a partir da expulsão – forçada ou pelo cansaço – das comunidades que nele vivem.

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As conquistas no sentido da implementação de mais áreas de uso sustentável – onde pode-se praticar agricultura da forma tradicional, ainda que para isso seja preciso permissão – permitiram a permanência das comunidades no território, mas a real demanda destas sempre foi a regularização fundiária. Ainda que residam no território há séculos, a maior parte das comunidades não tem suas terras demarcadas nem tituladas, o que gera grande insegurança.

Os conflitos fundiários se agravam com as novas políticas de digitalização do ordenamento territorial, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) no Brasil. Ou seja, ainda hoje lutam pelo seu direito a terra, além de ainda estarem travando conflitos com a política ambiental, principalmente nos parques.

Privatizar a concessione por 30 anos: deslocamentos, insegurança e gentrificação

Este é o caso de comunidades quilombolas e caboclas do município de Iporanga que foram sobrepostas pelo Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR).

Ana Ercilia - moradora de Iporanga desde criança, monitora ambiental e envolvida na atual luta contra a concessão do parque para o setor privado - conta que, em 1958, na época onde o parque foi instaurado, as pessoas do território acreditavam que este seria um parque de diversões, tamanha a falta de diálogo e transparência do poder público com as comunidades.

Depois de algum tempo, vieram a entender o verdadeiro tipo de parque que tinha chegado ao território, já através das restrições no acesso a serviços como luz elétrica, e quando as pessoas começaram a ser impedidas de reformarem e fazerem obras em suas próprias casas e quintais. Desde então se iniciou uma luta pelo recuo da área do PETAR do Bairro da Serra, local que foi ‘cortado ao meio’ quando o parque foi estabelecido, sendo que grande parte do território do bairro ficou dentro do parque.

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O bairro da Serra abriga tanto comunidades tradicionais quanto moradores antigos de Iporanga e abriga um patrimônio histórico e cultural importante do Vale do Ribeira.

A luta dos moradores, através da associação, garantiu um acordo que recuou o limite do parque, de forma que as moradias das pessoas ficassem fora da zona de restrições. No entanto, as áreas de roça continuaram dentro da área da unidade de conservação, o que restringiu muito os modos de vida e fez com que o trabalho com turismo virasse a única fonte de renda das famílias.  

O afastamento ocorreu, mas a regularização fundiária da comunidade do Bairro da Serra, não. Hoje, diversas famílias foram deslocadas pelo parque para este bairro, que fica na zona de amortecimento – a área que circunda o parque - do PETAR, mas o deslocamento não foi acompanhado do título da terra.

As famílias possuem apenas um direito de permanência provisória, o que não garante que o parque pode querer reassentá-las quando decidirem. Essa situação é particularmente difícil para as mulheres, que têm seu trabalho concentrado em seus próprios quintais e têm a maior parte do seu sustento tirado deste mesmo lugar e das diversas iniciativas de negócios locais.

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Atualmente, as comunidades enfrentam uma nova ofensiva sobre o território. O governo do Estado de São Paulo, a partir de sua política privatista, abriu uma chamada internacional para concessão de uma área do parque – onde estão concentrados os principais atrativos turísticos – por um período de 30 anos.

A abertura da concessão se deu do meio para o fim do 2021, já em meio a pandemia, e sem consulta pública alguma. Desde então, tem se iniciado um movimento amplo de resistência contra a concessão do parque.

A luta contra a concessão está organizada envolvendo moradores, povos e comunidades, pesquisadores, militantes e apoiadores no geral. As mulheres formam boa parte desta resistência, e a partir da sua auto-organização, demonstram que são impactadas de forma singular quando o governo escolhe fortalecer parcerias público-privadas desta maneira.

A questão da regularização fundiária, por exemplo, está sendo completamente ignorada neste processo. Que uma empresa privada possa ser literalmente dona do território por 30 anos e que as famílias e, em especial as mulheres, continuem na insegurança de não serem donas de suas terras é uma aberração, que demonstra claramente que a preocupação do estado com esta concessão não é a de promover melhoria na qualidade de vida das comunidades, como se alega.

Ainda que o parque tenha sido imposto às comunidades nos anos 1950, elas foram se apropriando dele ao longo do tempo, da forma como puderam. Uma das principais fontes de renda que os moradores possuem hoje, a partir da intensa restrição nos modos de vida, é aquela que provém do turismo de base comunitária organizado de forma autônoma, no trabalho como monitores ambientais.

Hoje, existem 250 monitores registrados no PETAR e quem o visita usualmente contrata estes monitores, sendo obrigatório no caso de visita às cavernas. Eles são moradores das comunidades, e além de apresentar as atrações do parque contam a história do Vale do Ribeira e das comunidades onde vivem. A organização da monitoria como um trabalho remunerado fez parte das negociações entre governo do estado e comunidades como uma alternativa de renda frente às restrições no uso do território e práticas costumeiras que passaram a ser crimes ambientais.

Uma das liberações que o edital da privatização propõe é que os turistas possam fazer passeios autoguiados dentro do parque, o que dificultaria ainda mais a possibilidade dos monitores ambientais obterem renda, pois deixariam de ser indispensáveis para o turismo.

Com a concessão, o protagonismo no campo do turismo deixa de ser das comunidades – especialmente das mulheres, que gerenciam os diversos pequenos negócios no entorno do parque - e passa a ser da empresa concessionária.

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O plano de concessão envolve, por exemplo, aumentar em muito a visitação anual do parque, criar trilhas para veículos e divulgar novos atrativos.

As mulheres em luta contra a concessão argumentam que, com estas iniciativas, o governo quer impor outro tipo de turismo no território: no lugar de pessoas interessadas em conhecer as comunidades através dos guias locais, que também são fonte de conhecimentos dos modos de vida local, se constrói um turismo organizado por empresas, que deve priorizar a contratação de guias bilíngues, por exemplo, e não a comunidade local.

Neste pacote de turismo se desmonta “o fluxo do ganha pão”, que foi um tipo de economia construída pela comunidade ao longo do tempo, e estas viram mais uma atração turística. Esta nova tendência extremamente colonialista tem se agravado no governo neoliberal do estado de São Paulo, que está implementando um programa de desenvolvimento chamado “Vale do Futuro”.

Outras comunidades, além das que ficam no entorno do PETAR, têm sido classificadas como atrações turísticas por este programa, inclusive com a colocação de placas de trânsito sinalizando-as pelas estradas, sem que houvesse nenhuma consulta ou diálogo com as comunidades sobre isso. Assim, a comunidade fica estrangeira de seu próprio território.

A gentrificação, que deve ocorrer por exemplo através da construção de hotéis e aumento do valor do ingresso – ações previstas no processo de concessão – deve fazer com que até o acesso das pessoas das comunidades ao parque, que é um lugar onde a comunidade conhece e desfruta, fique impossível.

O efeito previsto disso é que, ao contrário da valorização da comunidade e da construção de alternativas econômicas, elas sejam cada vez mais empurradas para fora do território e se vejam obrigadas a migrar para as periferias das grandes cidades do entorno, tendência que já podemos perceber, principalmente dentre os jovens, que não tem permanecido no território.

Além disso, para aquelas que ficam, permanece uma preocupação sobre o aumento da violência sexual e da objetificação dos corpos das mulheres com o aumento expressivo de homens vindo de fora. A concessão do parque também não tem como contrapartida nenhuma melhoria nas políticas públicas que atendem a comunidade. Como a concessão, se ocorrer, durará 30 anos, as mulheres têm uma preocupação especial com seus filhos ainda pequenos, que passarão infância, adolescência e vida adulta neste território privatizado.

Esta privatização está se dando ao mesmo tempo que o projeto “Vale do Futuro” avança no Vale do Ribeira, o que também levanta dúvidas sobre como a forma de exploração do território pode se dar. A principal frente deste projeto de desenvolvimento tem sido a abertura da região para a mineração, enquanto toda a região de Iporanga, inclusive a área do PETAR, já foi explorada pela mineração em outros momentos.

Como o processo de concessão prevê uso e exploração do território, isso levanta a suspeita de que a exploração minerária possa retornar em alguns pontos do território, inclusive dentro do PETAR, afinal, como as mulheres afirmam, nestes projetos “tudo está conectado e amarrado”.

No âmbito legal, todo este processo tem sido conduzido a partir de aprovações na calada da noite, sem nenhuma participação das comunidades diretamente afetadas, inclusive com o Estado fazendo uso de documentos de outras reuniões (atas, fotos), alegando que foram reuniões sobre a concessão, onde a comunidade teria sido consultada.

Devido à pandemia, o cuidado sanitário vira um álibi para a não realização de grandes consultas públicas. O que tem acontecido na prática é que as audiências são propositalmente esvaziadas, já que são propostas no formato online ou presencialmente na capital do estado, em um contexto em que os moradores não têm nem acesso à internet nem recursos para fazer viagens.

As ações previstas no edital, a serem desenvolvidas pela empresa que ganha a concessão, prevêm atividades que vão contra o Plano de Manejo do parque, o que escancara o racismo ambiental envolvido na privatização: se for para as empresas desenvolverem seus negócios, os estudos de impacto ambiental não precisam ser levados em consideração.

Apesar disso, esta forma de conduzir a concessão, que desrespeita o direito das comunidades tradicionais à consulta prévia, livre e informada (Convenção 169 da OIT) tem sido compreendida por parte do judiciário como válida, o que tem dado celeridade ao processo mesmo com estas irregularidades.

Em uma ofensiva ainda maior do que o governo estadual de João Dória em São Paulo o governo federal de Jair Bolsonaro lançou em 7 de fevereiro de 2022 um decreto de concessão/privatização de cinco Unidades de Conservação. Uma delas, o Parque Nacional da Serra da Canastra foi criado durante a ditadura militar e se sobrepõe a áreas de 1,5 mil famílias de produtores rurais, incluindo 43 comunidades e 550 famílias tradicionais, reconhecidas como Canastreiros.

As mulheres se auto-organizam e resistem

Quando ninguém é ouvido, muito menos as mulheres. Se os espaços de participação são escassos, eles costumam ser destinados apenas à algumas lideranças – no geral, homens – que, até mesmo pela estrutura patriarcal das próprias comunidades, não levam as percepções, argumentos e preocupações das mulheres para o debate público.

Isto, aliado ao desrespeito que o Estado tem tratado a questão da participação, fez com que as mulheres se unissem em um coletivo próprio onde organizam a luta contra a concessão a partir de sua auto-organização. Além de engrossar a resistência a partir de uma pluralidade de vozes, os espaços auto-organizados de mulheres também tem sido importantes como forma de autocuidado contra o assédio que o Estado tem promovido durante o processo, que tem gerado inclusive adoecimento mental e emocional dentre as comunidades.

O que fica evidente é que as formas de conservação ‘sem gente’, que tem sido adotadas como modelo e ditado a política ambiental de muitos países, inclusive o Brasil, há décadas, se mostra muito eficiente para o capital neste atual período histórico de expansão das suas fronteiras. Criando territórios sem pessoas também se criam territórios sem resistência, onde projetos privatizadores como é o exemplo da concessão do PETAR possam se desenvolver sem entraves.

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Acreditamos que a luta contra a concessão neste caso será vitoriosa porque as comunidades de Iporanga nunca aceitaram o fato de não serem donas do seu próprio território, e com o tempo, já que a imposição do parque era uma realidade que não conseguiam mudar, foram se tornando cada vez mais donas dele, se apropriando dos meios de viver e criar naquele ambiente, no entanto, sempre expondo e travando lutas sobre os conflitos ainda latentes, como a falta de titulação das terras.

Não é por acaso que o Estado planeja, no plano de concessão, fechar um dos acessos do parque pelo município de Iporanga, ainda que esta entrada facilite muito a visitação de uma das cavernas de maior destaque do parque. Esta é uma tentativa de excluir as comunidades mais resistentes, inviabilizando tanto o acesso delas mesmas ao parque quanto o seu trabalho como monitores ambientais.

Isto nos lembra que a história do Vale do Ribeira tem sido a história do apagamento dos caminhos feitos pelas comunidades tradicionais, e a construção de caminhos que privilegiam o fluxo do capital, tendo a BR  116 – grande rodovia, responsável por boa parte do fluxo de mercadorias da região sudeste, que corta boa parte dos municípios do Vale do Ribeira pelo meio - como um ícone disso.

O que sabemos é que os caminhos antigos na realidade nunca deixam de ser utilizados e que os antigos têm uma preocupação especial em lembrar aos mais novos por onde estes caminhos passam, onde eles estão, e aonde desembocam. Se o projeto de privatização pretende tirar as comunidades de seu território a partir da rearquitetura dos caminhos, é porque não contam com a capacidade de resistência e invenção dos povos que os traçaram.

Para apoiar a luta das mulheres organizadas contra a privatização do PETAR e acompanhar este movimento, acesse e assine a petição online

 

*Natália Lobo e Miriam Nobre integram a SOF e a Marcha Mundial das Mulheres em São Paulo. Jéssica Cristina Pires é caiçara, quilombola, técnica em agroecologia, representante das comunidades de Iporanga, Coletivo de Mulheres do PETAR, Movimento Petar sem Concessão. Paula Daniel Fogaça é bióloga, mestra em Sustentabilidade.

**A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo. Leia outras colunas. Este artigo foi publicado originalmente no WRM.

***O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é uma ferramenta criada pelo novo código florestal no Brasil que consiste em um cadastro digital georreferenciado de todo o território rural do país. Este instrumento, que deveria servir para orientar a implementação das políticas ambientais, tem sido usado como documento que justifica o que tem sido chamado de grilagem digital de terras em muitos países do Sul Global. Para saber mais.

****Para mais informações sobre a história do Bairro da Serra e a relação das comunidades tradicionais de Iporanga com o PETAR, ver “Florestas e lutas por reconhecimento: território, identidades e direitos na Mata Atlântica brasileira” de Pedro Castelo Branco Silveira. Disponível aqui.

*****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante