Ação conta com com protagonismo da agricultura familiar e de povos indígenas
Por Michelle Portela*
O crescimento da produção de alimentos agroecológicos e do acesso à comida de verdade pelas crianças que estudam na rede pública de ensino está acelerado em Maués (AM), município com cerca de 47 mil habitantes, localizado a 267 quilômetros de Manaus, capital do estado do Amazonas. Maués é tido como o mais tradicional polo produtor de guaraná do país. Lá, o fruto processado vira pó, bastão ou extrato. Nas prateleiras dos supermercados, é vendido em forma de bebidas energéticas, refrigerantes, cosméticos, barrinhas de cereais e até sorvete. Nesse ambiente de tradição da agricultura familiar, produtoras/es locais começam a adaptar as suas atividades ao cultivo de orgânicos e comercialização certificada desses produtos a um mercado ainda em formação.
Com apoio da iniciativa Agroecologia nos Municípios, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Rede Maniva de Agroecologia (Rema), em Maués, abre espaço para diálogo em meio ao caldeirão cultural resultante da diversidade biológica e social da região, que também é território do povo indígena Sateré-mawé. Assim, o grupo articula agricultoras e agricultores urbanos e rurais, entre elas/es, indígenas, para construir a rede agroecológica do município.
:: Cerca de 80% dos alimentos agroecológicos chegam até feiras, supermercados e escolas ::
Para entender um pouco mais sobre o processo de transição de sistemas convencionais de produção para a agroecologia que estão acontecendo na região, conversamos com Ramon Morato, consultor estadual da iniciativa Agroecologia nos Municípios e representante da Rema.
Quais as estratégias da iniciativa Agroecologia nos Municípios para incentivar a agroecologia na terra do guaraná?
Ramon Morato: O desenvolvimento da iniciativa envolveu quatro frentes de incidência no município: construção da Feira Agroecológica de Maués; fortalecimento da atividade de meliponicultura; apoio para que mais famílias tenham acesso ao selo de indicação geográfica (IG) para o guaraná de Maués; e ampliação da implementação da chamada do Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar), voltada para o atendimento da nota técnica nº 01/2017** da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos do Amazonas (Catrapoa). Essas ações foram iniciadas em 2020, durante outra iniciativa também idealizada pela ANA, o projeto "Agroecologia nas Eleições”. Outro ponto importante para a afirmação da agroecologia no município são as mobilizações e reuniões em torno das feiras agroecológicas, com protagonismo feminino.
:: Educação agroecológica: o legado da escola do MST que alfabetizou 800 famílias no Sul da Bahia ::
Como foi a organização da feira?
A partir da necessidade da criação de cestas agroecológicas como estratégia de circuito curto de comercialização, para mitigar as incertezas e dificuldades da pandemia do covid-19, em 2020, que prejudicou principalmente as famílias agricultoras, houve uma concentração maior de pessoas em torno do pensamento agroecológico e, consequentemente, das suas estratégias. Sob o lema “alimentação saudável unindo o campo e a cidade”, a Rema de Maués se consolidou na diversificação das cestas para a feira agroecológica, onde as famílias produtoras passaram a expor seus produtos. A necessidade de organização de uma feira plural, que pudesse expressar a cultura local, exigiu diálogo em reuniões e articulações mais frequentes, o que aproximou os atores.
O movimento agroecológico em Maués é composto por agricultoras e agricultores familiares e suas organizações, com destaque para as associações locais de produtoras/es, entre elas, a Associação Comunitária Agrícola do Rio Urupadi (Ascampa), a Associação de Artesãs do Rio Limão e da Associação dos Agricultores Rurais (Ampma) da Comunidade São Raimundo do Mutuca. Além das organizações da agricultura familiar, também estão presentes instituições como o Instituto Federal do Amazonas (Ifam), que se posiciona como um alicerce seguro para o movimento agroecológico de Maués.
E quais os resultados dessa mobilização?
Baseado na iniciativa observada no alto Rio Negro, para o reconhecimento da agricultura tradicional do Rio Negro pelo Instituto do Patrmônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), estabelecemos em Maués o Conselho de Produtores, atuante desde 2018. O Conselho, que é formado por agricultoras e agricultores e articulado por dois técnicos da Rema, subsidiou debates e diálogos, unificando os grupos agricultoras/es da região. Foi por meio do Conselho de Produtores que foram articuladas as pautas de incidência prioritárias, como o selo de indicação geográfica (IG) para o Guaraná de Maués, a expansão da nota técnica da Catrapoa-AM para o Pnae e a intenção de uma coordenação municipal de meliponicultura.
E como o conselho atua para pautar políticas públicas?
Em 2021, foi decidido pelo Conselho que as pautas levantadas seriam apresentadas para a Comissão de Agricultura da Câmara de Vereadoras/es de Maués. Neste período, foram realizadas diversas reuniões com o presidente da Comissão de Agricultura, no intuito de entender os melhores caminhos para implementação das pautas de interesse do Conselho, a nível municipal.
Quais os destaques da iniciativa em Maués?
Um ponto que merece destaque é o protagonismo da estudante Sandy Albuquerque, que aos 14 anos apresentou um Projeto de Lei para a criação da ‘Feira Agroecológica’ no município, no ano passado (2020). A iniciativa da jovem fez parte do projeto da Câmara Municipal intitulado ‘Parlamento Jovem’ e foi avaliado pelas/os vereadoras/es da cidade e por uma comissão de advogados de Manaus. O projeto defendido pela Sandy, construído a partir da demanda da própria estudante, filha de agricultora e feirante, ficou em terceiro lugar e trouxe a discussão da feira agroecológica para dentro da Câmara de Vereadoras/es de Maués, com repercussão ampliada para fora do município, com a divulgação da ação na imprensa regional. Ponto para as/os jovens agricultoras/es e para Rema, levantando a bandeira “juventude que ousa lutar, constrói poder popular”. Atualmente, a estudante ocupa a coordenação jovem da Rema, cargo que foi criado durante assembleia do dia 20 de dezembro de 2021, para incentivar ainda mais o caráter educacional e representativo da Rema.
E quais os passos propostos para ampliar a feira?
RM: Para a pauta da Feira Agroecológica, alguns grupos foram formados, no intuito de dialogar com secretarias municipais, como a Secretaria de Produção (Sepror) e a Secretaria de Cultura e Turismo (Sectur). A ideia era a municipalização da feira, como estratégia para melhorar a estrutura física e a logística aos produtores, além de garantir a sua periodicidade e espaço público de ocorrência. O que tem acontecido é a articulação para que o campus Maués, do Ifam, interiorize a Feira Agroecológica. Para a estruturação, foram construídas duas pontes de diálogo com deputados federais e estaduais, para os quais apresentamos projetos distintos de R$ 60 mil.
Existem outras ações em curso que você queira destacar?
Ao longo de 2022, está prevista a criação de cerca de quatro Organismos de Controle Social (OCS) para a declaração e garantia da qualidade da produção orgânica para grupos que atuam na feira. Espera-se, dessa forma, reafirmar o compromisso das consumidoras com a agroecologia e que possam acessar políticas de alimentação já em caráter de produção orgânica.
Para a proposta do Pnae, no âmbito da expansão da nota técnica emitida pela Catrapoa, espera-se o favorecimento dos povos tradicionais. A Ascampa submeteu proposta para o último edital de chamada pública especial para indígenas e comunidades tradicionais, lançado pela Secretaria do Estado (Seduc). A ideia é estimular agricultoras/es locais a praticar e aperfeiçoar o sistema de aquisição de alimentos nas comunidades. Foram envolvidas cinco escolas nessa etapa da iniciativa e mais de 50 famílias agricultoras.
Essas ações contam com o apoio da Rema, parceira regional da ANA, que participa de espaços importantes da construção do movimento agroecológico e orgânico na região e também ocupa a secretaria do Fórum de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, auxilia na Catrapoa, coordena a Comissão de Produção Orgânica do Amazonas e representa a região do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima na Comissão Nacional de Produção Orgânica (CPOrg).
E quais os saberes produzidos pela iniciativa sobre agroecologia em Maués?
O que se procurou apresentar no município de Maués foi uma síntese do pensamento agroecológico, pensamentos complementares entre si, que são viáveis para o estado do Amazonas. A cadeia da meliponicultura e do guaraná valorizam o conhecimento tradicional. São espécies da biodiversidade, de importância cultural, econômica e ecológica, além de conferir autonomia e organização social para os grupos produtivos antes dispersos. Além disso, trazem afirmação de povos tradicionais na sua territorialidade. Por esses e outros motivos, tais iniciativas foram escolhidas e relatadas, e procurou dar visibilidade para esses temas e suas trajetórias na incidência política municipal, em um momento em que tais cadeias sofrem importantes modificações.
As feiras são emblemáticas para o movimento agroecológico e possuem importância central na organização do movimento, o que fica evidente no caso de Maués. Espaço de comercialização direto de produtos da sociobiodiversidade, manda um recado claro: uma feira livre agroecológica não trabalha com intermediários atravessadores, um ponto determinante na geração e agregação de renda aos produtos da agricultura familiar. Afora isso, expressa a diversidade de gênero, a diversidade de cores e cultura que a Amazônia e o Brasil oferecem. A Feira Agroecológica de Maués tem sua ideia concebida no poder de decisão, principalmente, das atrizes protagonistas locais, que são as agricultoras, professoras e agentes de cultura que a fizeram acontecer.
*Michelle Portela é comunicadora popular da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)
**Acompanhe a coluna Agroecologia e Democracia. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de diálogo e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas em iniciativas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de sistemas alimentares. Leia outros artigos.
*** Nota: Expedição da Nota Técnica nº 01/2017 pelo Ministério Público Federal (MPF) e instituições responsáveis pela fiscalização sanitária no Amazonas (Superintendência Federal de Agricultura e Agência de Defesa Agropecuária no Amazonas), relativa ao autoconsumo/consumo familiar no contexto dos povos indígenas, que permite a aquisição pelas escolas indígenas de proteína (peixe, frango etc.) e de produtos vegetais processados (farinha, polpas, geleias etc.) provenientes das próprias comunidades ou aldeias, no âmbito do Pnae, adequando entraves burocráticos desconectados das tradições alimentares quanto aos padrões de vigilância sanitária, considerando a existência de mecanismos tradicionais de controle alimentar dentro da cultura destes povos.
**** Entrevista realizada em janeiro de 2022.
*****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo