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31 de março, dia de dar banho no monstro

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Não importa que 377 agentes públicos tenham sido responsabilizados por prisões ilegais, chacinas, mortes e desaparições. Nenhum foi punido - Nelson Almeida / AFP
Há outras maneiras, mais verazes e mais didáticas, de lembrar 1964

Todo santo ano, neste dia, os generais trancam os esqueletos no armário e passam uma flanela na História para mostrá-la espanada, polida, higienizada e livre das nódoas que a revelam na sua integridade. Todo 31 de março expõem assim sua memória dos 21 anos de ditadura militar.

É o dia de dar banho no monstro. Dia da ducha. De ensaboar-lhe as fuças, escovar-lhe os dentes e limar-lhe os caninos. De pentear-lhe a grenha, podar suas garras e de remover o sangue coagulado que ocultam. Dia de remover-lhe a imundície para torná-lo apresentável à vista da sociedade.

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Não importa que 377 agentes públicos tenham sido responsabilizados por prisões ilegais, chacinas, mortes e desaparições. Nenhum foi punido.

Perseguições, prisões, torturas, estupros e os assassinatos evanescem no ar. No discurso da caserna, os eventos de 1964 são descritos de duas formas: ou foram consequência das ações deletérias dos outros, os inimigos da democracia, ou ocorreram quase como uma ocorrência do mundo natural e, portanto, sem responsáveis. E se repetem monotonamente. É o tal banho.

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“Havia ameaça real à paz e à democracia”, proclamou o ministro Braga Netto, da Defesa, na sua ordem do dia no ano passado. Ou seja, para defender a democracia, impôs-se uma ditadura. As Forças Armadas, que instituíram a censura e a supressão de direitos, são descritas como fiadoras “das liberdades democráticas que hoje desfrutamos”.

Não foi diferente agora em 2022. Na noite de ontem (30), nova ordem do dia do ministro e futuro vice de Bolsonaro na chapa deste ano, sustenta que “o Movimento de 31 de março de 1964 é um marco histórico da evolução política brasileira (...)”. Como se vê, Braga Netto entende que duas décadas de involução política foram “uma evolução política”.

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Também sustenta que, naquele período, “as instituições se fortaleceram”. Parece uma ousadia definir como fortalecimento o fechamento do Congresso ou a a remoção de ministros do Supremo Tribunal Federal como aconteceu após o AI-5.

Pouco provável também é que a ausência de eleições presidenciais durante 21 anos possa ser encarada como uma maneira de enaltecer o direito ao voto. Tampouco a enxurrada de cassações de vereadores, deputados, senadores e governadores. Todos eleitos pela cidadania. De mesma forma, o banimento de todos os partidos políticos, a intervenção em entidades civis e a perseguição ao livre direito de associação.

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Braga Netto pondera a necessidade de avaliar aquele momento histórico, aprofundando “o que a sociedade vivenciava naquele momento” sob o argumento da necessidade da “devida contextualização”. É um pedido interessante para passar pano no horror. Se formos aceitá-lo, abrindo mão na interpretação dos fatos a partir do presente, iremos acabar aceitando até a escravidão.

Já as legiões de pantufas aquarteladas no Clube Militar, do Rio, são mais incisivas. Hoje haverá até um almoço comemorativo do golpe. “Há 58 anos o Brasil disse não ao comunismo, de forma contundente, por meio das manifestações de diversos extratos da sociedade”, começa sua nota. Solene e pomposo, o tom reproduz e trai a nostalgia do regime autoritário, citado como “memorável e vitorioso” por obra “do Movimento Contrarrevolucionário de 31 de Março de 1964, o que livrou o nosso país do jugo socialista”.

Há outras maneiras – mais verazes e mais didáticas -- de lembrar 1964.

Eu, por exemplo, prefiro lembrar de Maria Regina.

Era março também e Maria Regina tinha 32 anos quando foi presa após ser baleada na perna direita. Dias depois, quando a família a reencontrou, estava deitada nua e morta em uma mesa do Instituto Médico Legal, do Rio. Além de escoriações generalizadas – marcas de tortura – recebera uma saraivada de disparos no tórax e na cabeça. Aquela pessoa na maca não morrera do ferimento na perna. Morrera de morte matada sob guarda do Estado.

Maria Regina Lobo Leite Figueiredo morreu na véspera de mais um aniversário da ditadura que a matara. Era o oitavo, naquele ano de 1972.

Quando penso no 31 de março penso em Iara Iavelberg que morreu de bala na Bahia, em Helenira Rezende de Souza Nazareth, que morreu a golpes de baioneta no Araguaia, em Aurora Maria Nascimento Furtado que morreu com o crânio esmagado por um torniquete de aço no Rio. E penso em Maria Regina.

 

*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017). Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo