A ministra Cármen Lúcia sinalizou, nesta quinta-feira (31), voto favorável a duas ações julgadas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) que acusam o governo de Jair Bolsonaro (PL) de ferir a Constituição ao permitir índices recordes de desmatamento e descumprir compromissos internacionais de preservação da Amazônia.
Relatora das ações, a ministra começou a leitura de um longo voto reiterando duras críticas à gestão federal, chamada por ela de “réu confesso” da transgressão ambiental. Já o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou que não há inconstitucionalidade na conduta do governo.
Segundo o presidente da Corte, Luiz Fux, o voto da magistrada será concluído na próxima quarta-feira (6), quando o julgamento será retomado com a manifestação do restante dos ministros.
Na última quarta-feira (30), o STF iniciou o julgamento da “pauta verde”, conjunto de sete ações protocoladas por partidos políticos e ONGs que tentam frear o desmonte das políticas públicas para o setor ambiental, que marca a gestão de Bolsonaro.
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Redução "sem concorrente" do desmatamento em governos petistas
Por enquanto, a análise do STF sobre a “pauta verde” diz respeito à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 760 e à Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 54, que estão sendo julgadas em conjunto por terem conteúdos complementares.
Considerada a mais importante delas, a ADPF 760 pede a retomada do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia (PPCDAm), engavetado por Bolsonaro e tida como responsável pela redução de 83% do desmatamento na Amazônia entre 2002 e 2012, durante governos do Partido dos Trabalhadores (PT).
“É uma redução sem concorrentes no mundo, e os indígenas conseguiram os menores índices de desmatamento nas áreas demarcadas, sendo de se realçar a atuação efetiva, eficaz e continuada do poder público”, avaliou Cármen Lúcia.
“Isto afirma uma política de retrocesso em relação ao que já tinha sido atingido. Baixamos o desmatamento de uma forma inédita até 2012”, afirmou. “Desde 2018, o crescimento é preocupante, e o risco é efetivo”, completou.
A magistrada voltou a comparar implicitamente, como fez na quarta (30), a gestão de Bolsonaro com “cupins”, que comem “por dentro” a estrutura administrativa.
“O que são esses cupins? O cupim do autoritarismo, o cupim do populismo, e cupim de interesses pessoais, o cupim da ineficiência administrativa. Tudo isso ajuda a construir um quadro que faz com que não se tenha o cumprimento objetivo da matéria constitucional”, pontuou.
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Ministra vê "teatro ambiental" de Bolsonaro
Elencando dados de estudos científicos, Cármen Lúcia disse que a mudança brusca da política ambiental sob Bolsonaro foi responsável pela aceleração da devastação do bioma amazônico, contribuindo para o agravamento das mudanças climáticas.
Ela apontou a redução da fiscalização, diminuição de recursos orçamentários, enfraquecimento de normas ambientais infraconstitucionais e o abandono do plano de combate ao desmatamento até então vigente, sem a substituição por ações eficientes.
“Neste sentido”, disse a magistrada, “há a comprovação sobre o estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental no Brasil”.
Em seu voto, Cármen Lúcia rebateu argumentos do advogado-geral da União, Bruno Bianco, proferidos na sessão de ontem (30). Bianco havia citado as operações federais Verde Brasil e Guardiões do Bioma, de combate a crimes ambientais, e incrementos nos orçamentos do Ibama e do ICMBio em 2021.
“Não é incomum em matéria ambiental que o Estado faça de conta que tem um aparato administrativo. E este fazer de conta é quase - como bem afirma o ministro Herman Benjamin [do STJ] - um teatro ambiental administrativo. Mantém-se a estrutura que não funciona, ou seja, descumpre-se o dever constitucional do agir eficiente”, declarou a ministra.
PGR: Brasil tem "soberania" para desmatar
A sessão foi aberta com a manifestação do procurador-geral da República, Augusto Aras. Alinhado à gestão bolsonarista, ele disse não ver descumprimento da Constituição e justificou que o combate ao desmatamento não tem “precisão matemática” na obtenção de resultados.
Aras considerou que os partidos políticos e as entidades que ingressaram com as ações têm a “pretensão de interferir” nas ações de um governo eleito. Afirmou, também, que o Judiciário não pode “substituir o legislador na definição de políticas públicas”.
“O embate político, salvo quando configura evidente violação à lei maior, não se resolve, data venia, com apelo à jurisdição constitucional. E nas ações ora postas em exame, não me parece estar evidenciada a violação ao sistema constitucional”, colocou.
“Por mais tentador que seja fazer uso das vias judiciais para mudar rumos de políticas públicas", prosseguiu Aras, "há um risco de um trato reducionista de questão altamente complexa sem a garantia de que isso implica em verdadeiro avanço".
Invocada por Aras, a “soberania” do governo brasileiro sobre seu território não pode, nas palavras de Cármen Lúcia, dar “direito de o país interferir na qualidade de vida de outros povos do planeta”.
Edição: Rodrigo Durão Coelho