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Morte de criança em tiroteio entre PM e suspeitos gera onda de protestos em Pernambuco

Heloysa brincava no terraço de casa, em Porto de Galinhas, quando foi atingida por uma bala

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Nesta quinta-feira (31) a escola onde estudava Heloysa não abriu; alguns barqueiros não foram trabalhar no turismo, em solidariedade à família - Arquivo pessoal/Reprodução

No fim da tarde de quarta-feira (30), a Polícia Militar de Pernambuco entrou em confronto com suspeitos de tráfico de drogas na comunidade de Salinas, distrito de Porto de Galinhas, município de Ipojuca (PE). Uma menina de 6 anos, chamada Heloysa Gabriele, brincava no terraço de casa e acabou atingida por um tiro. Ela foi levada a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), mas não resistiu.

A Secretaria de Defesa Social (SDS), responsável pelas corporações policiais de Pernambuco, admite que a bala pode ter partido de um policial, mas alega que não pode dar certeza no momento, já que as investigações ainda estão em curso, sob responsabilidade da Polícia Civil – que tem até 30 dias para divulgar o resultado do inquérito.

Relatos de moradores são de que não houve troca de tiros, apenas a polícia teria atirado, perseguindo um único suspeito. Nas redes sociais, vizinhos da criança acusam a Polícia Militar pelo assassinato. O grupo policial que realizou a operação integra o Batalhão de Operações Especiais (Bope).

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Após o tiroteio, o comércio no distrito de Salinas fechou e a população realizou um protesto já no início da noite, encerrado com uma oração e gritos de “Bope assassino”.

Em nota publicada nas redes sociais, a Articulação Negra de Pernambuco (ANEPE) denunciou que após o sepultamento de Heloysa "já contabilizam mais de 12 horas de tiros, bombas, inúmeras viaturas chegando, helicópteros sobrevoando a casa dos moradores, e tentativas de impedir a comunicação e divulgação das violências".

Segundo informações do G1, também nesta quinta (31) o comércio não abriu, a escola onde a criança estudava não realizou aulas e parte dos jangadeiros que atuam com turistas em Porto de Galinhas não trabalharam em protesto e solidariedade ao pai da criança, que também é jangadeiro. A família tem se negado a conceder entrevistas.

Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Corregedoria Geral da SDS afirma que “é prematuro, neste momento, fazer afirmativas. A PCPE vai se pronunciar após a conclusão dos trabalhos, que serão realizados com dedicação, técnica e isenção”.

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A secretaria garante que “desde o primeiro momento está acompanhando a ação policial”. “Uma equipe foi enviada a Porto de Galinhas para colher informações e verificar se há indícios de que houve infração disciplinar. Caso sejam encontrados elementos suficientes, será iniciado um procedimento para investigação preliminar”, afirma a nota.

“O Estado concorda com esse tipo de operação”

Sobre o tema, o Brasil de Fato entrevistou a advogada Edna Jatobá, integrante do Gabinete de Apoio Jurídico às Organizações Populares (GAJOP), entidade da sociedade civil que integra o Conselho Estadual de Defesa da Criança e Adolescente (CEDCA-PE).

Jatobá classifica como “desastrosa” a operação policial. “Apesar de não ser explícita a vontade de atirar uma criança, nós não entendemos isso como uma ‘fatalidade’. Uma operação que ocorre com troca de tiros a esmo, numa comunidade populosa como Salinas, é de se esperar que algo desse tipo aconteça”, diz Edna, mencionando o risco de trocar tiros numa área residencial às 17h30.

Ela responsabiliza a Secretaria de Defesa Social do Governo do Estado pelos casos do tipo. “Independentemente de ter sido uma troca de tiros ou se foi só a polícia atirando, a responsabilidade é também do Estado, que concorda com esse tipo de operação, que traz a possibilidade de vítimas que não estão envolvidas no conflito”, pontua. Existe a expectativa que o governador Paulo Câmara (PSB) faça um pronunciamento ou adote alguma medida sobre o tema.

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A advogada se diz preocupada com a forma que a Polícia Militar tem atuado nas periferias da região metropolitana do Recife. “Na abordagem eles atiram primeiro e perguntam depois. E quando estão em operação, como esse caso em Ipojuca, chegam abrindo fogo, trocando tiros, um comportamento que eles só têm em comunidades criminalizadas”, diz ela.

Jatobá percebe que em bairros de classe média o comportamento é diferente. “Nesses outros territórios também existem organizações criminosas e grandes lideranças do tráfico de drogas, mas a polícia nunca chega atirando”, aponta ela, que considera essa diferença de atuação da polícia em bairros pobres e de maioria negra, como um reflexo do racismo institucional.

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Por isso ela reforça a necessidade de ir além da responsabilização do policial enquanto indivíduo. “É insuficiente. O contexto é maior. Temos que observar como as instituições policiais estão atuando. A truculência e a troca de tiros têm anuência dos seus superiores”, diz Jatobá.

O GAJOP tem parceria com a Fogo Cruzado, que notifica ocorrências com armas de fogo na região metropolitana do Recife e em outras regiões do país. “Temos poucas ocorrências de operações policiais com vítimas crianças. Mas com vítimas adolescentes temos um número um pouco maior”, alerta Edna Jatobá.

A advogada aponta que há casos em que a PM matou adolescentes e não foi sem intenção. “O caso de Heloysa está sendo caracterizado como ‘bala perdida’. Mas temos casos como os de Vicor Kawan [17 anos, morto em dezembro de 2021], Lucas Luz [17, morto em 2020], Jhonny [17, também em 2020], que são adolescentes mortos durante abordagens policiais”, lembra ela.

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A investigação e pedido de responsabilização dos agentes e do poder público se dá através da Corregedoria, um órgão interno, da própria secretaria responsável pelas polícias. “A Corregedoria é fundamental para termos a responsabilização, mas a Justiça é lenta, a investigação também e demora muito a apresentar resultados para a sociedade”, critica a advogada.

Ela menciona como exemplo de lentidão o caso dos dois homens que perderam a visão por ação policial nos protestos de maio de 2021. “Isso também acontece em vários dos casos de adolescentes e jovens mortos em abordagens policiais”, lamenta Edna Jatobá. Ela avalia que os tribunais precisam mudar a forma de encarar esses casos. “Temos que observar como a Justiça tem se organizado para aceitar policiais no banco dos réus, além de como aceitam a responsabilização do Estado”, completou.

Fonte: BdF Pernambuco

Edição: Vanessa Gonzaga