Era uma terça-feira, mais um dia em que Maria Delia Leiva e outras obreiras cumpriam uma jornada de trabalho na fábrica Textiles San Andrés, na província de Buenos Aires, Argentina. Ela era psicóloga e professora de dança, mas na fábrica contava com um berçário para deixar seu filho de apenas três meses, Gabriel, que levava ao pediatra. Depois, costumava tomar um mate com sua mãe. No dia11 de janeiro de 1977, em plena ditadura militar, Maria nunca chegou à casa de sua mãe, tampouco ao pediatra.
Maria, ou Dilín, para os familiares, foi militante do Partido Revolucionário dos Trabalhadores e compõe a cifra de 30 mil desaparecidos pela ditadura militar argentina entre 1976 e 1983. Gabriel também foi sequestrado, um dos cerca de 500 bebês roubados pelos militares e alocados em outras famílias.
A terceira e mais sangrenta ditadura da Argentina deixou marcas profundas e grandes lacunas na história do país. A aterradora cifra de desaparecidos foi revelada por anos de investigações feitas pela própria sociedade – e que inaugurariam importantes organizações de direitos humanos.
Algumas delas são as hoje conformadas pelas Mães da Praça de Maio, que buscavam seus filhos e netos desaparecidos. Em 1987, o Banco Nacional de Dados Genéticos apoiaria essa busca com o avanço da ciência genética, impulsionada pela militância das mães e avós.
Assim, 25 anos mais tarde, Gabriel pôde ser encontrado
“Gabriel viveu 25 anos com outro nome e outra data de nascimento, entregue a uma família em Pergamino por uma policial da prisão feminina”, conta Adriana Leiva, irmã mais nova de Maria. “Reencontramos Gabriel em 2000, quando ele recuperou sua identidade. Foi um reencontro emocionante que, infelizmente, minha mãe não pôde presenciar.”
O peso de um pacto simbólico pós-ditadura e a latência das lacunas na história sempre fez difícil instalar a versão negacionista sobre o ocorrido. Isolados em setores ligados aos militares ou em alguns partidos de direita, os negacionistas costumam questionar a cifra de 30 mil desaparecidos e relativizar o terrorismo de Estado.
No entanto, neste ano, os atos e discursos negacionistas foram expressivos no marco do 24 de março, aniversário do golpe militar e estabelecido como o Dia da Memória, Verdade e Justiça na Argentina.
“Destruíram a placa em memória a 7 alunas desaparecidas, na escola que minha irmã frequentava. Também destruíram um mural que os alunos fizeram, e vamos reconstrui-lo”, conta Adriana Leiva. “Os negacionistas sempre estiveram aí, por isso devemos estar sempre atentos. Eles sabem onde acudir para atrair os jovens, principalmente em um momento de tanta vulnerabilidade”, reflete.
O debate que se instala no país, agora, é sobre como atuar diante dos atos e discursos negacionistas sobre o terrorismo de Estado.
Além da opinião
No dia 24 da semana passada, um grupo de jovens militantes do Partido Republicano (PRO) (partido do ex-presidente Mauricio Macri), vandalizou a estação de metrô Rodolfo Walsh, na capital federal, em Buenos Aires, localizada próxima à esquina onde o jornalista e escritor foi visto pela última vez com vida, sequestrado pelos militares.
Cartazes com os dizeres “assassino” aludiam a Walsh, que foi parte da organização guerrilheira Montoneros, e reivindicavam o que chamam de “memória real” ou “história completa”. A narrativa faz eco ao esforço negacionista constante em equiparar os guerrilheiros que combatiam a ditadura com as forças armadas que tomaram o governo, conhecido na Argentina como “a teoria dos dois demônios”.
“O negacionismo tem essas duas caras”, observa a socióloga Valentina Salvi, do Núcleo de Estudos sobre Memória (IDES) no país. “O discurso comum na década de 80 era desmentir as organizações de direitos humanos, dizendo que queriam vingança e desacreditar as Forças Armadas, hoje um discurso mais residual e que gera mais resistência. Outro discurso, que tem maior aderência e circulação social, são os que tendem a igualar as violências, responsabilizando as organizações pelos atos das Forças Armadas.”
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O ato foi apoiado por políticos ultradireitistas, autointitulados “libertários”, que agora ocupam cadeiras no Congresso Nacional desde a última eleição legislativa, em outubro do ano passado.
“A verdade só pode sair à luz com a difusão da história completa, que permita estabelecer os acontecimentos com neutralidade, sem bandeiras ideológicas”, discursou Rebeca Fleitas, deputada do partido de ultradireita La Libertad Avanza, durante a sessão na legislatura portenha em homenagem ao 24 de março.
“Estou convencido de que houve dois demônios”, disse, em entrevista nesta semana, o deputado federal José Luis Espert, do partido Avanza Libertad. “Não foram 30 mil desaparecidos.”
Há pelo menos quatro projetos de lei apresentados nos últimos anos que propõem a penalização de discursos negacionistas sobre a ditadura, um deles apresentado pelo próprio Secretário de Direitos Humanos da Nação, Horacio Pietragalla Corti. No entanto, há discordâncias sobre a penalização dessas práticas.
A Secretaria de Direitos Humanos lançou, na semana passada, a publicação “Negacionismo”, que sintetiza as principais discussões acadêmicas sobre como responder a esse avanço para criar pontes com o debate na militância política e na gestão estatal.
“Vimos um florescer de práticas e expressões negacionistas desde a gestão de Mauricio Macri (2016-2019), que representa setores que se favoreceram economicamente durante a última ditadura”, aponta Nicolás Rapetti, chefe de gabinete da Secretaria de Direitos Humanos. “Com a novidade na democracia argentina de uma representatividade legislativa dessas vozes negacionistas a partir das últimas eleições, trabalhamos para fomentar a discussão e ajudar a chegar a um consenso sobre o que fazer diante dessas situações.”
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“Há duas posturas majoritárias: uma em que prevalece a liberdade de expressão e outra que defende que o Estado deve tomar posição sobre o que se pode ou não dizer ou fazer”, pontua. “O piso de consenso entre todos é a penalização de condutas ou expressões negacionistas por parte de funcionários com responsabilidade institucional nos três poderes do estado nacional ou provincial.”
O sociólogo Daniel Feierstein, autor do livro “Memorias y representaciones”, foi um dos convidados a dar esse debate. “Quando o negacionismo entra como delito, já são delitos tipificados no Código Penal. Há uma condenação por discurso de ódio, uma Lei Antidiscriminatória na Argentina e existe a figura de apologia ao delito. No caso de manifestações negacionistas que não contenham discursos de ódio ou uma apologia ao delito, a confrontação deve ser de caráter político e não com o Código Penal. Não porque não pareçam atos desprezíveis, mas basicamente por ser contraproducente. Porque vitimiza o negacionismo e o torna mais atraente e com mais força em sua capacidade de interpelação”, explica. “Sim, há uma exceção: quando essas manifestações negacionistas partem de pessoas que exercem funções públicas nos 3 poderes do Estado.”
Memórias em disputa
O debate parte de um lugar de memória viva. Ainda que minoritário, o acionar negacionista entra em um contexto de um país que tornou sua história presente, não como um objeto sólido estancado no passado, mas algo constantemente em movimento. E também em disputa.
As próprias organizações de direitos humanos tomaram rumos e posturas distintas em suas lutas pela memória, verdade e justiça. As Mães da Praça de Maio compõem organizações diferentes. A militância peronista e a militância de esquerda marcham separados em cada 24 de março.
Andrea Benites é sobrevivente da ditadura argentina e se exilou em 1977. Após uma passagem pelo Brasil e outros países da Europa, mora desde então na Espanha. Quando questionada sobre os movimentos negacionistas na Argentina, aponta para os próprios governos progressistas do país ao longo dos últimos anos.
“Há uma fauna de ‘progressistas’ embandeirados dos direitos humanos que, por exemplo, desenvolveram uma política de banalização dos centros clandestinos de detenção, alterando sua forma, apagando vestígios de que ali existiu um centro clandestino, transformando esses lugares em um show”, aponta.
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“A Escola Mecânica Armada (ESMA) hoje se chama ex-ESMA. Ninguém diz 'ex-Auschwitz'. Nesse lugar, onde o corpo dos nossos companheiros foram queimados, hoje jogam futebol, fazem oficinas de cozinha, festas, churrasco. É uma banalização que leva a não aprofundar, a deixar o que aconteceu no passado. E isso também é uma forma de negacionismo.”
Com outros exilados na Europa, ela formou a Comissão Argentina de Direitos Humanos (Cadhu), cujo presidente de honra era Julio Cortázar. A organização, assim como muitas outras, coletou e sistematizou relatos de sobreviventes ainda nos anos de ditadura, identificando locais que serviam como centros clandestinos de detenção.
São cerca de 800 os locais que serviram como centros de detenção e tortura na ditadura já identificados, como destaca a arqueóloga Laura Duguine, coordenadora do sítio de memória ex-Clube Atlético da cidade de Buenos Aires. O local foi demolido em 1978 pelos militares para a construção da avenida 25 de Maio. “Foi um centro clandestino parte de um circuito repressivo que pertencia ao Primeiro Corpo do Exército”, conta. “Até hoje, identificamos 300 desaparecidos e cerca de 200 sobreviventes que foram sequestrados e não sabiam onde estiveram.”
“A enorme militância da sociedade em construir seu passado, principalmente a partir dos sobreviventes, que foi e é incansável até hoje, foi convergindo com diferentes disciplinas e formas de lutar e recuperar a memória. Nesse sentido, a identificação dos lugares que foram centros clandestinos e a recuperação desses lugares como espaços de memória tem um papel importante nesse processo.”
Uma das exigências de organismos de direitos humanos é a abertura dos arquivos do Estado nesse processo de investigação e sistematização das listas das vítimas e centros de detenção. Estima-se que a já alta cifra de 30 mil desaparecidos deve ser ainda maior. “O primeiro negacionismo parte das forças do Estado, ao não aportar toda a informação que o próprio Estado investiga em uma situação de reparação”, diz Duguine.
Pablo Pimentel, da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos de La Matanza, diz que costuma contar uma história aos que questionam – para menos – o número de vítimas da ditadura.
“Quando Néstor Kirchner fecha a Escola Mecânica Armada e cria o espaço de memória, um casal vem à nossa organização, muito temeroso, e começa a contar uma história do desaparecimento do irmão dela. Pergunto quando havia acontecido, pensando ser recente, na época, em 2006. Se tinham testemunhas, quando aconteceu. Disseram que foi em 1976. Contaram que foram à delegacia do bairro onde moravam, e o policial disse que não deveriam falar sobre isso, que um dia o irmão dela iria voltar. E o que fizeram foi exatamente isso: cumpriram o que o policial disse, por temor, e nunca mais falaram com ninguém. Os negacionistas deveriam se perguntar, então, se foram 30 mil os desaparecidos, ou mais.”
Edição: Arturo Hartmann