“A escrita é um gesto revolucionário”
O que Thais, Carla e Luz têm em comum? Elas são escritoras que buscam um lugar para as suas palavras na literatura brasileira, mas enfrentam resistências. Apenas 30% de todos os livros publicados por grandes editoras do país nas últimas décadas foram assinados por mulheres.
É o que aponta o estudo da Universidade de Brasília que comprovou que nas grandes editoras se publicam mais autores do que autoras. Apesar desse número ser pequeno, existem cada vez mais mulheres escrevendo, participando de clubes e oficinas literárias, e buscando caminhos via editais ou editoras independentes.
Segundo a autora do estudo, Regina Dalcastagnè, doutora em Teoria Literária pela Unicamp e professora titular de literatura brasileira da UnB, se para as mulheres é mais difícil escrever e publicar, os desafios são maiores para as mulheres trabalhadoras.
"A mulher pobre já vai ter uma dificuldade maior simplesmente, porque ela não tem tempo. Ela vai trabalhar o dia inteiro, vai chegar em casa e continuar trabalhando, vai lavar louça, roupa e cuidar dos filhos, essa é a realidade brasileira. Se a realidade de uma mulher branca é difícil, sabemos o quanto mais difícil é para as mulheres negras. Então há uma dificuldade para que as mulheres se imaginem escritoras numa situação como essa”, explica.
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Mas, como elas vêm desbravando o mercado dos livros e das editoras? Minoria entre nomes publicados e estudados, as autoras traçam novos caminhos para que seus escritos sejam divulgados. A mineira Thaís Campolina publicou recentemente o livro ‘Eu investigo qualquer coisa sem registro’ que são poemas sobre o cotidiano. A obra é como um exercício de contemplação e um olhar de estranhamento para os fatos corriqueiros.
Após finalizar o livro em setembro de 2020, ela tentou dois editais e não passou. No terceiro foi contemplada com 2º lugar no concurso que publica livros de poetas iniciantes promovido pela Crivo Editorial com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte. Baixe o livro gratuitamente aqui.
"É preciso coragem para falar das coisas reais, cruéis, da complexidade humana que nos cerca, principalmente, porque é uma narrativa imposta a nós mulheres que devemos ser dóceis e temos que fugir disso, temos que desobedecer”.
A distribuição dos livros da Thais é gratuita e ocorre em centros culturais de Belo Horizonte. Ela é curadora de clubes de leitura e concorda que falta diversidade de autoras publicadas por grandes editoras.
“Sou uma mulher branca e percebo que é mais fácil para mim tanto escrever pelas oportunidades que tive e também pelos acessos que tenho hoje, mas também de pensar na escrita desta forma. Então é importante as grandes editoras olharem para outras mulheres, pois o mercado brasileiro precisa delas, não só das mulheres brancas que vivem na Grande São Paulo e escrevem livros relacionados a essas vivências”, diz Campolina.
Autoras negras
Segundo levantamento da UNB, quando se faz o recorte para autoras negras e indígenas publicadas pelas grandes editoras, o número é quase zero. A pesquisadora diz que percebe um desejo grande pela escrita, pois essas mulheres continuam insistindo em produzir mesmo com muitas dúvidas se vão conseguir publicar ou se vão conseguir ser respeitadas como escritoras.
“Cada vez que uma mulher negra ou pobre consegue ter alguma visibilidade dentro do campo literário, ela está convidando muitas outras a fazer o mesmo. A escrita é um gesto revolucionário e vai ser sempre e para as mulheres negras isso é ainda mais forte".
Luz Ribeiro é a primeira mulher a vencer o campeonato nacional de Slam. A escritora negra, moradora do Capão Redondo, da zona sul de São Paulo, tem quatro livros publicados, o último é de 2020 - Novembro composto por um poema único sobre a solidão das mulheres negras e o autocuidado. Ela conta que foi depois de participar de saraus da Cooperifa, que passou a entender que a escrita “é o meio de me comunicar, é o meu revide, acalanto e ponto de cura”.
“Não há nenhuma publicação minha individual por meio de uma grande editora. A verba para que livros como os meus sejam publicados a verbo oriunda do bolso desse meu amigo [dono de uma editora independente] juntamente com o meu juntamente dos artistas que se propõem a publicar juntamente com ele. Então nós que temos corpos dissidentes vamos encontrando maneiras de acessar. Então a publicação periférica ela acontece dessa maneira, arrombando ainda as portas”.
Foi exatamente as portas fechadas em grandes editoras que moveu Luz Ribeiro. “Em 2013, ela li uma entrevista, um dado que dizia que mulheres pretas são as que menos publicam no território. No período, não chegava a 3% de publicações. E eu decidi que queria fazer uma publicação, foi totalmente independente. A cada publicação que eu faço é uma chance de registrar a minha digital na história, quero que as minhas palavras que ecoem e fixem em folhas.”, comenta a poeta.
Narrativas das mulheres
As mulheres estão conseguindo colocar no mundo as várias violências. A feminista e escritora Carla Gerson traz no primeiro livro - O Som do Tapa - publicado no ano passado, temas importantes como estupro, violência doméstica e sobrecarga feminina. A orelha escrita por Aline Bei anuncia Carla tece suas histórias com ternura e força. Sensibilidade. parece que estamos abrindo a mala do mundo e o mundo é uma Mulher.
“Embora o livro não trate apenas sobre violência física, ele trata sobre violência psicológica e relacionamentos abusivos. É a pressão estética, a sobrecarga feminina tanto na maternidade quanto nos outros relacionamentos, tudo isso de alguma forma é tratado no livro. Escrevi a partir de histórias que eu vivi, histórias que eu presenciei e que me incomodavam histórias e que me impulsionaram a escrever”, diz a autora.
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O livro de contos começou a ser escrito em 2020 enquanto Carla estava fazendo cursos e oficinas. Ela publicou em uma editora independente, a Patuá. Ela fala que as escritoras iniciantes enfrentam resistências para publicar em grandes editoras e muitas vezes optam pela autopublicação. Ela fala da importância de se discutir esses temas por meio da ficção.
“A ficção é, assim como a arte, ela alcança um lugar que as questões teóricas não alcançam. Então às vezes você estuda o feminismo, mas quando lê ou ouve sobre uma pessoa que passou por isso te leva para um outro lugar, um lugar de vivência mesmo que não seja diretamente”.
Para Regina Dalcastagnè, as editoras independentes têm um papel fundamental para colocar essas obras no mercado editorial.
“Temos uma expansão de editoras pequenas no país que vem surgindo sem parar nos últimos anos, não só no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas também no interior e em outras regiões do país. Isso é muito importante, porque são espaços abertos novas autoras onde elas têm lugar e onde há uma preocupação grande de trazer novas vozes de autores negros e negras indígenas”, diz a pesquisadora da UNB.
Edição: Letícia Viola