Chamadas para negociações e condenação das sanções unilaterais aprofundam impasse
Por Emanuela Almeida da Silva, Fabíola Lara de Oliveira, Luccas Gissoni e Vitor Gabriel da Silva
A postura da China perante a Guerra na Ucrânia tem sido de neutralidade. De um lado, o país tem evitado condenar a Rússia, mas, de outro, tem mostrado preocupação com a situação ucraniana. Apesar da tentativa de neutralidade, a China tem exercido o julgamento das condições históricas que teriam levado à guerra: o cercamento que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e os Estados Unidos (EUA) teriam feito à Rússia nas últimas décadas. Assim, se em uma frente, a do conflito, a posição da China é de neutralidade entre Rússia e Ucrânia, em outra, quando se trata de julgar o papel securitário dos EUA e da Otan, o país tem denunciado o comportamento expansionista da aliança europeia-estadunidense e, adicionalmente, rebatido qualquer tentativa de comparação entre a situação russo-ucraniana com a sino-taiwanesa.
Relações sino-russas
A operação na Ucrânia ocorre numa conjuntura de intensificação das relações sino-russas. A guerra teve início em 24 de fevereiro, vinte dias após a publicação da “Declaração Conjunta da Federação Russa e da República Popular da China sobre as Relações Internacionais em uma Nova Era de Desenvolvimento Sustentável Global”. O documento anuncia uma nova ordem global, multipolar e interdependente, em que os signatários pretendem ter papel destacado. Significativamente, reafirma a existência de múltiplos caminhos aceitáveis para a democracia, criticando de forma severa os Estados que buscam impor seus próprios modelos aos demais. Mas não menciona explicitamente o conflito na Ucrânia.
Saiba mais: "Ninguém ganha em uma guerra comercial", diz China após EUA retirarem sanções sobre produtos
Além de questões diplomáticas, a declaração demonstra preocupação com a segurança mundial, mencionando o “impacto negativo” dos EUA sobre a paz e a estabilidade na região do Indo-Pacífico, a parceria desse país com o Reino Unido e a Austrália na área de propulsão nuclear submarina e sua intenção de instalar mísseis na Ásia-Pacífico e na Europa. Aborda também denúncias de tratados realizados pelos EUA tanto para o controle de armamentos e o desenvolvimento de armas biológicas, como sua demora em eliminar armas químicas. Após anos de relações próximas nas dimensões econômica, política e energética, solidificadas em iniciativas como os Brics, a Organização de Cooperação de Xangai e o acordo assinado em 2014 sobre o fornecimento de gás natural pela Rússia à China, em operação desde o final de 2019, a parceria entre os dois países alcançou uma dimensão mais estratégica.
Em termos comerciais, a China se consolidou como o principal destino para as exportações russas (recebeu 14,48% das vendas russas em 2019), e apresentou-se como parceiro confiável em termos financeiros: dos US$ 630 bi das reservas russas, estima-se que 15% estejam em Yuan, a moeda chinesa. Por outro lado, a Rússia é a segunda mais importante fonte de petróleo para a China, com o fornecimento, em 2020, de cerca de 15,5% de todo o petróleo consumido no país (um pouco atrás da Arábia Saudita, que forneceu 15,9%).
Leia também: Pequim avisa que retaliará EUA caso sofra sanções e alerta sobre prejuízos para a economia
Relações sino-ucranianas
Já com a Ucrânia, as relações bilaterais têm seguido um padrão de aproximação desde a década de 1990, apesar de ter havido momentos de tensão. Após uma progressiva proximidade na década de 90 e início da década de 2000, com a China comprando armas e até um porta-aviões da Ucrânia, em 2005 as relações deterioraram-se após uma visita oficial taiwanesa a este país. Após a eleição de Viktor Yanukovych, líder ucraniano próximo à Rússia, em 2010, os dois países aproximaram-se novamente, chegando a firmar uma parceria estratégica em 2011 e um tratado de segurança na área nuclear em 2013. No entanto, com os protestos da Praça Maidan e a mudança institucional na Ucrânia, em 2014, as relações bilaterais voltaram a esfriar.
Mesmo nesse cenário, contudo, a importância econômica da China para a Ucrânia foi crescente. Em 2019, a China desbancou a Rússia e a Polônia e transformou-se no principal destino das exportações ucranianas (comprando 7,06% das vendas do país), e maior fonte de importações para o país (13,11% das compras ucranianas foram provenientes da China). Além disso, desde 2017 passou a integrar a Belt and Road Initiative (BRI), programa chinês que facilita investimentos em infraestrutura. A Ucrânia é a maior fornecedora de milho e a segunda maior fornecedora de armas para a China (em contrapartida, a China é sua principal compradora).
:: EUA x China: o conflito em que todos perdem ::
Uma maior aproximação da Ucrânia com os EUA, contudo, levou o país a bloquear, em 2021, uma tentativa da empresa chinesa Skyrizon de adquirir a fabricante aeroespacial ucraniana Motor Sich, após os EUA a adicionarem à lista de empresas de uso final militar. Ainda assim, no âmbito da BRI, China e Ucrânia assinaram diversos contratos de construção relativos a transporte e energia que somam cerca de US$ 3 bi. Desse modo, como ocorre também com a Rússia, os interesses chineses com a Ucrânia justificam a dificuldade do país em tomar uma posição que não seja a de neutralidade.
Tradição de não intervenção
Dentre os princípios que historicamente baseiam a condução da política externa chinesa estão a não interferência nos assuntos domésticos dos países, a inviolabilidade da soberania e a integridade territorial. O apreço a esses valores é um reflexo tanto do passado chinês vítima de violações estrangeiras, quanto da situação presente, dada a posição de Taiwan, considerada parte integral do seu território. Em função disso, a China se opõe com veemência a invasões militares, intervenções humanitárias e a aplicação de sanções em resposta a conflitos internacionais como, mais recentemente, o conflito na Síria e a crise na Venezuela.
:: Pequim avisa que retaliará EUA caso sofra sanções e alerta sobre prejuízos para a economia ::
Para compreender a postura do país é necessário levar em consideração a retórica da proteção aos direitos humanos para justificar invasões e intervenções. Há entre muitos acadêmicos e políticos chineses o consenso de que o humanitarismo serve como pano de fundo para legitimar intervenções ligadas a interesses da política hegemônica dos Estados Unidos. Assim, o princípio da integridade territorial, tal como codificado no Artigo 2 da carta da ONU é considerado essencial para proteger os países mais vulneráveis aos avanços dessas políticas.
A reincorporação da Crimeia ao território russo em 2014 abriu um novo capítulo na política externa chinesa, pois colocou em questão um impasse aparente entre defender seus princípios e preservar a relação com a Rússia. A China optou por adotar uma postura neutra, não se alinhando formalmente nem à Rússia e tampouco aos EUA e à União Europeia, opondo-se às sanções contra a Rússia e abstendo-se nas votações de resoluções que a condenaram, votadas durante a Assembleia Geral da ONU (AGNU) no referido ano. O país manteve sua tradição ao defender o fim da violência e a resolução do conflito por meios diplomáticos, ao mesmo tempo em que reconheceu a complexidade da questão. Não condenou a Rússia, mas não reconheceu a anexação da Crimeia.
Posição cautelosa
Diante da eclosão do conflito, reconhecendo a importância que a China atribui às relações com a Rússia, mas também com a Ucrânia, e a forma como sua política externa vinha se posicionando desde a questão da Crimeia (2014), não curiosamente o país adotou uma postura de neutralidade. Desde o início, o governo chinês, por meio de seus representantes, evita a utilização dos termos “Guerra” ou “Invasão” e defende a manutenção da paz. Embora a grande maioria dos países tenha condenado a ação russa e classificado o reconhecimento de Donetsk e Luhansk como violação da integridade territorial e soberania ucraniana, durante a Assembléia Geral das Nações Unidas, em março, a China se absteve, seguindo a posição que teve no Conselho de Segurança, e expressou preocupações com a expansão da OTAN e a segurança fronteiriça russa. O voto da China coincidiu com o de outros 34 países como Índia, Paquistão e África do Sul.
Em declarações posteriores, Pequim considerou legítimas as preocupações relacionadas à segurança fronteiriça russa diante da expansão da OTAN ao Leste Europeu, mas ao mesmo tempo excluiu a possibilidade de auxílio militar ao governo russo, defendendo a diplomacia como meio para solução do conflito e reiterando – o que é importante princípio da política chinesa, devido à questão de Taiwan – a defesa da integridade territorial da Ucrânia. Além disso, o país manteve a posição adotada anteriormente durante a anexação da Crimeia, em 2014, opondo-se às sanções econômicas promovidas pela Europa e Estados Unidos, afirmando que “não traz paz e intensifica as dificuldades econômicas aos países envolvidos no conflito”. Por outro lado, anunciou a assistência financeira de cerca de 15 milhões de yuans, em ajuda humanitária para a Ucrânia, por meio da Cruz Vermelha da China. (Continua após o vídeo.)
Assista:
Entretanto, apesar da manutenção da tentativa de neutralidade, a China vem sendo pressionada por governos ocidentais para a adoção de uma postura mais dura em relação à agressão russa. Jens Stoltenberg, secretário geral da OTAN, acusou o país de apoiar a guerra iniciada pela Rússia na Ucrânia. Adicionalmente, Reino Unido e EUA insinuaram que a situação entre China e Taiwan poderia evoluir do mesmo modo que ocorreu com Rússia e Ucrânia. A China se posicionou ao afirmar que são situações completamente diferentes, uma vez que Taiwan não é um Estado soberano como a Ucrânia, e que a própria ONU reconheceu, por meio da Resolução 2758 de 1971, que a República Popular da China é a única representante do povo chinês. Como resposta, a China acusou os EUA de tentarem usar a guerra da Ucrânia para criar outra crise no estreito de Taiwan.
Diante desse cenário, a China tem sido cautelosa. Há preocupação em respeitar as sanções colocadas contra a Rússia, para não comprometer interesses econômicos e financeiros com o Ocidente. Ao mesmo tempo, teme-se que as sanções a Moscou e a persistência do conflito afetem as relações econômicas sino-russas, dada a importância russa como fonte de matrizes energéticas, como petróleo, carvão e gás natural, mas também de alimentos. De fato, empresas chinesas já começaram a rever investimentos na Rússia, receosas de serem afetadas pelas sanções.
:: "Nunca esqueceremos", diz Pequim sobre bombardeio de embaixada chinesa pela Otan ::
Para além disso, a posição cautelosa adotada pela China é para evitar implicações políticas para os próprios interesses chineses que a coloque em contradição, como por exemplo o reconhecimento de Donetsk e Luhansk, que implicaria em conflito de interesses internos com as suas províncias separatistas, como o Tibet, ou mesmo a situação com Tawian.
Apesar de sua tentativa de neutralidade, a China tem demonstrado clara preocupação pelos impactos políticos e econômicos com a escalada de tensões. Há uma chamada insistente para negociações, condenação das sanções unilaterais e respeito às preocupações de segurança legítimas de ambas as partes. A China se posiciona claramente contra qualquer tentativa de desestabilizar o governo russo ou excluir o país de fóruns como o G-20. Por outro lado, os EUA parecem estar interessados em um prolongamento da guerra, para poder pressionar mais a Rússia e fortalecer a Otan (até por motivos eleitorais internos de Biden e países europeus), já o interesse da China é para um rápido fim da guerra e uma volta à normalização e estabilidade.
*O OPEB (Observatório de Política Externa Brasileira) é um núcleo de professores e estudantes de Relações Internacionais da UFABC que analisa de forma crítica a nova inserção internacional brasileira, a partir de 2019. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo