A adequada compreensão de um fenômeno, a partir de seu nome e de sua lógica interna, é fundamental
Por Cláudia Maria Dadico*
Há pelo menos quatro anos debate-se acerca do contexto político instalado no Brasil: protofascismo, fascismo propriamente dito ou pós-fascismo? Ou outra coisa ainda pior? Qual a expressão correta para designar o regime político instalado no Brasil após o golpe que retirou do poder uma presidenta legitimamente eleita?
Giorgio Agamben, na obra “Estado de Exceção”, afirma que a “terminologia é o momento propriamente poético do pensamento, então as escolhas terminológicas nunca podem ser neutras”. A escolha de uma expressão “implica uma tomada de posição quanto à natureza do fenômeno que se propõe a estudar e quanto à lógica mais adequada à sua compreensão”. Pode parecer academicismo, mas a adequada compreensão de um fenômeno, a partir de seu nome e de sua lógica interna, é fundamental para moldar formas de resistência e organizar o enfrentamento de suas consequências.
É bem verdade que cada processo histórico é único. No entanto, ainda que se descarte, por impossibilidade cronológica e histórica, a mera “reencenação” das experiências do fascismo italiano ou do nazismo alemão das décadas de 30 e 40 do século passado, também não se pode afastar completamente a compreensão de formas contemporâneas de poder autoritário a partir da inspiração fascista. Nesse sentido, mesmo autores que já estudavam essas experiências históricas do século passado expandiram o conceito para abranger outras formas de exercício de poder em que se manifestavam algumas de suas características.
Dito isso, é possível identificar ao menos três compreensões sobre a conjuntura política brasileira da atualidade: (1) uma versão atualizada do fascismo; (2) um protofascismo e (3) uma experiência inserida no contexto de “pós-fascismo”. Vamos analisar, brevemente, cada uma delas:
1) Check-list do fascismo: a partir da obra de autores como Umberto Eco e do autor português João Bernardo, é possível elencar diversas características dos movimentos e regimes fascistas do início do século XX e na constatação da presença de um número mínimo desses elementos, reconhece-se um modo de exercício do poder como fascista. Então, para Umberto Eco (“O Fascismo Eterno”), um regime ou movimento político se caracterizaria como fascista se apresentasse, pelo menos, três das seguintes características: 1) culto da tradição; 2) uma recusa seletiva da modernidade capitalista; 3) o culto da ação pela ação; 4) o racismo; 5) ser gerado pela frustração, especialmente das classes médias; 6) a recusa à crítica; 7) o nacionalismo; 8) mobilização de um sentimento nacional de humilhação em relação a seus inimigos; 8) guerra permanente e a criação artificial de inimigos; 9) elitismo; 10) culto do heroísmo e da morte; 11) machismo e homofobia; 12) homogeneização do povo e sua reunião em torno de uma vontade comum (fenômeno de massas); 13) linguagem chula e pobre.
Você deve estar aí pensando se o atual governo brasileiro gabaritou, não é? Mas vamos adiante…
O intelectual português João Bernardo (“Labirintos do Fascismo”) traz ainda outros elementos. Ele qualifica o fascismo como uma “revolta da ordem”, ou seja, um movimento de massas que se utiliza da tecnologia das revoluções para manter as relações sociais na ordem capitalista. Ele afirma a existência de dois eixos: um eixo radical, composto das milícias armadas e dos partidos de massa e um outro eixo conservador, composto pelo Exército e pela Igreja. De acordo com a experiência de cada país, predominarão o eixo radical ou o eixo conservador.
2) Protofascismo: uma segunda corrente, ainda que reconhecendo a presença de muitos elementos fascistas, não reconhece o atual governo brasileiro ainda como fascista, mas tendo presente a ideia de que a história é um processo material e dialético, atribui ao atual governo a nomenclatura de “protofascista” - o prefixo proto possui o significado daquilo que vem primeiro, que é anterior - protofascismo no sentido de uma etapa inicial do processo fascista que, se não for detido, ou revertido, se converterá, brevemente em regime propriamente fascista.
3) Pós-fascismo: uma terceira corrente, fundada nas concepções de Nicos Poulantzas (“Fascismo e Ditadura”), vai também compreender que o fascismo é um processo histórico, mas à diferença das demais, afirma que somente há sentido falar-se em fascismo ou fascismos em países que se encontravam no estágio imperialista do capitalismo. Seu desenvolvimento somente foi possível num contexto de potências europeias supostamente prejudicadas na partilha colonialista por novos mercados, no amesquinhamento de seus “espaços vitais”, valer dizer, de suas colônias em África, Ásia e mesmo América Latina e que, portanto, criaram as condições para que o capitalismo mostrasse a “sua face mais dura”, com as consequências históricas que todos nós conhecemos. Esses autores, nos quais podemos incluir Enzo Bello, Gustavo Capella, Rene José Keller, a partir de Enzo Traverso, compreendem os movimentos de extrema direita que se proliferam pelo mundo, à luz do estágio atual do capitalismo. Ou seja, para estes autores, a lógica do “pós”, ou seja, daquilo que sucede, seria mais correta para a compreensão dos movimentos extremistas atuais, que se desenvolvem a partir das condições ditadas por um capitalismo cada vez mais financeirizado, distanciado dos processos produtivos, que deprecia o trabalho humano, produzindo cada vez maiores contingentes de massas desempregadas e descartáveis. Assim, o bolsonarismo inserido na categoria do “pós-fascismo” seria uma espécie de “fascismo atualizado e repaginado”, fora dos contornos dados por um momento histórico de expansão e disputa imperialista por mercados.
Ao contrário, é icônica a imagem do atual presidente brasileiro batendo continência para a bandeira dos Estados Unidos. O projeto político atual fundamenta-se nos interesses das burguesias mineradoras e agroexportadoras, com as consequências desastrosas da devastação ambiental e de violência contra as comunidades tradicionais e povos indígenas.
Portanto, aqui reside uma diferença fundamental entre os movimentos e regimes fascistas do início do século XX e o bolsonarismo como experiência pós-fascista no Brasil do século XXI, repaginado como “turbotecnomachonazifascismo”, na excelente síntese de Márcia Tiburi.
O aprofundamento do projeto pós-fascista, na verdade, não se esgota na continuidade dos traços “clássicos” do fascismo: o irracionalismo, o masculinismo tóxico, a homofobia, a misoginia, o racismo, o culto ao familismo, a instauração de uma guerra permanente contra inimigos – comunistas, chineses, petralhas etc… o que por si só já é extremamente grave e preocupante. Significa a continuidade do processo de “recolonização”, ou seja, a recolocação do Brasil na ordem econômica mundial como mera colônia exportadora de “commodities” agropecuárias e minérios, em movimento de retorno aos séculos XVI, XVII, XVIII – à lógica da “acumulação primitiva” do capital, no qual a violência mortífera é elemento constitutivo e essencial para seu êxito.
Daí a necessidade cada vez maior de expansão dos territórios dedicados à extração de minérios, ao garimpo, à agricultura e à pecuária em larga escala, ao uso de agrotóxicos cada vez mais potentes, maior devastação ambiental e crescimento dos níveis de violência no campo, contra pequenos agricultores, comunidades tradicionais e povos indígenas.
No contexto pós-fascista brasileiro, as ameaças quase diárias à realização de eleições e à Justiça Eleitoral deveriam despertar atenção redobrada de toda sociedade brasileira para tudo o que estará em jogo, não apenas nos próximos quatro anos, mas no futuro das próximas gerações e dos biomas brasileiros e na viabilidade de um projeto de soberania nacional.
*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Felipe Mendes