A fiscalização ambiental no Pará, estado que mais desmata a Floresta Amazônica, está sob grave risco, segundo servidores do Ibama. A ameaça atende pelo nome de Rafael Angelo Juliano, novo superintendente do órgão no estado. A nomeação, no final de março, é considerada por entidades de servidores como um caso de conflito de interesses.
Juliano é conhecido entre servidores do Ibama por dar consultoria a pecuaristas e produtores de soja que já foram autuados pelo próprio Ibama por crimes ambientais. Ele prestava os serviços por meio de sua empresa, a Amazônia Serviços Rurais, com sede em Marabá (PA), e não pode permanecer na companhia enquanto estiver no cargo no Ibama.
Em 1999 o engenheiro foi alvo de uma operação da Polícia Federal (PF) por irregularidades na documentação envolvendo a compras de produtos de origem vegetal. Três anos depois, foi denunciado pelo Ministério Público pelo mesmo motivo. Segundo reportagem da revista Piauí, o caso foi arquivado.
O superintendente é o responsável máximo pelo Ibama em cada estado, e responde diretamente ao presidente do órgão. “Quando vimos quem era o novo superintendente, a sensação foi de espanto e incredulidade”, contou um servidor do órgão no Pará, sob a condição de anonimato.
A associação que representa servidores do meio ambiente no Pará (Asibama) e o Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal no Estado do Pará (Sintsep) afirmaram à reportagem que o caso pode ser enquadrado na Lei 12.813/2013, que define situações de conflito de interesses na administração pública.
A nomeação "configura mais um desrespeito aos servidores, concursados e treinados para a fiscalização e controle ambiental justamente das atividades exercidas pelo nomeado, dando acesso a um particular que trabalha no setor monitorado a ações, operações e dados sigilosos, cujo sigilo é fundamental para o êxito nas operações”, diz nota da Asibama-PA.
Como superintendente, Juliano terá acesso a dados sigilosos que, se vazados, poderão inviabilizar ações de fiscalização e beneficiar fazendeiros até então representados por ele. Entenda quais informações são essas e como elas podem ser usadas para beneficiar criminosos ambientais:
Antecipação de operações contra crimes ambientais
Todos os anos, o Ibama aprova o planejamento das operações de fiscalização previstas para os 12 meses seguintes. Para a grande maioria dos servidores de carreira, as operações aparecem no sistema interno apenas como um código, sem qualquer informação.
Uma vez na cadeira de superintendente, Juliano poderá saber quando e onde haverá ações. Caso caiam nas mãos de criminosos ambientais com antecedência, essas informações poderão prejudicar a efetividade da fiscalização.
Órgãos estaduais que atuam na área, como a Secretaria de Meio Ambiente (Sema) do Paraná ou a Polícia Militar (PM), eventualmente pedem auxílio do Ibama em operações contra crimes ambientais. "Juliano vai ter acesso a essas solicitações e poderá antecipar até mesmo ações que não sejam de iniciativa do Ibama", diz um servidor.
Poder de forçar a prescrição de processos
Juliano também terá livre acesso ao Sistema Integrado de Cadastro, Arrecadação e Fiscalização do Ibama (Sicafi). O sistema armazena infrações lavradas pelo Ibama e pelo ICMBio, com informações sobre valores e datas de prescrição das multas.
Assim, o superintende poderá ter acesso a informações que outros consultores não têm, inclusive poderá saber quais são as empresas com irregularidades ou pendências junto ao órgão ambiental. “Sabendo quando vai prescrever o auto de infração, ele [Juliano] pode forçar uma parada no processo até ele prescrever”, explica um servidor do Ibama.
Dados sigilosos
O Documento de Origem Florestal (DOF) é outro sistema interno que contém informações sensíveis. Por meio dele, servidores controlam toda a produção de madeira, desde o corte até o transporte ao consumidor final. É possível saber quais espécies foram extraídas, qual volume foi comercializado e quando tudo aconteceu.
Os dados disponíveis no DOF são usados para identificar infratores ambientais. “Nenhum infrator sabe como a gente faz essa classificação nos dados. É uma vantagem absurda se ele [Juliano] resolver repassar essa informação. Vai inviabilizar a nossa atuação para quem souber”, diz um fiscal do órgão.
Informações privilegiadas
Uma vez no cargo, Juliano poderá beneficiar ex-clientes com projetos de reparação de danos ambientais em curso no Ibama. Poderá, ainda, ter acesso a análises técnicas feitas sobre projetos que ele mesmo havia apresentado, em nome de clientes.
“Ele pode usar isso para corrigir falhas antes da notificação do Ibama. Isso dá a ele uma vantagem no tempo de aprovação dos projetos e na regularização deles”, aponta um servidor.
Sucateamento, assédio e perseguição
O Pará costuma liderar rankings de devastação da Floresta Amazônica. Entre agosto de 2020 e julho de 2021, foi o estado que mais desmatou o bioma, com perda de cobertura vegetal de 4.147 km², 43% a mais do que o registrado no período anterior. Os dados são do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
O estado é também um polo da mineração ilegal de ouro, com conflitos frequentes entre indígenas e garimpeiros, e uma das maiores taxas de contaminação por mercúrio no país. No início do ano, a operação Caribe Amazônico destruiu máquinas e acampamentos da atividade ilegal, provocando prejuízo de R$ 12 milhões aos empresários do garimpo na região.
Mesmo tendo importância estratégica na preservação da Amazônia, a superintendência do Ibama no Pará passa por um processo de sucateamento. “Desde outubro do ano passado até janeiro ficamos sem internet na superintendência. Até o começo de janeiro, também, estávamos sem serviço de limpeza”, relata um servidor.
Casos de assédio moral e perseguição interna marcaram a gestão do antecessor de Juliano na superintendência, o coronel aposentado Washington Luis Rodrigues, da Polícia Militar de São Paulo, indicado pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles.
“Era assim, o servidor que abria auto de infração recebia processo administrativo [que pode resultar em demissão]. Tenho muitos colegas que estão com depressão, passando por problemas psicológicos por causa disso”, conta um funcionário da superintendência do Pará.
Criado por sindicatos de servidores públicos federais em 2020, o site Assediômetro aponta o Ibama como o líder de casos de assédio institucional contra servidores, com 21 registros.
Outro Lado
Em nota o Ibama afirma que Rafael Angelo Juliano foi nomeado para o cargo de superintendente no Pará com base em critérios técnicos. A reportagem entrou em contato, via e-mail e WhatsApp, com a empresa de Juliano, a Amazônia Serviços Rurais e o ministério do Meio Ambiente, mas não recebeu respostas até o fechamento desta reportagem. Se recebermos retornos, o texto será atualizado.
Edição: Felipe Mendes