Toda crise é uma oportunidade, inclusive para manobras políticas. Por isso, logo nas primeiras semanas da crise sanitária provocada pelo coronavírus, em março de 2020, a administração do então presidente Donald Trump, "aproveitou" a pandemia para usar, de maneira inédita, a lei sanitária conhecida como Título 42 — ou "Title 42", em inglês.
Eleito com uma plataforma antimigração, dando vazão à retórica xenofóbica do slogan "Make America Great Again" ("Faça a América Grande De Novo"), Trump fez uso da regra para permitir que agentes da fronteira e alfândega dos Estados Unidos recusassem a entrada de qualquer imigrante, alegando proteção sanitária.
"Essa lei foi evocada pela primeira vez para questões migratórias graças a um cara chamado Stephen Miller, que é tipo um arquiteto das políticas anti-imigrantes de Trump", conta ao Brasil de Fato a advogada Ana Maria Rivera-Forastieri, que trabalha como Diretora Jurídica da ONG Community Justice Exchange. "O argumento usado pelo governo para lançar mão do Título 42, uma regra sanitária, era que estávamos no meio de uma pandemia e, portanto, era preciso fechar as fronteiras para evitar que estrangeiros entrassem aqui contaminados".
A justificativa apresentada até poderia soar plausível, se ela fosse amparada pela ciência e fosse aplicada de maneira igualitária — o que não aconteceu. Cientistas ligados ao Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês) questionaram a veracidade dos dados que provariam a eficácia do Título 42, ao mesmo tempo em que viajantes que chegavam aos EUA por vias aéreas, sobretudo de países nórdicos, eram aceitos no país.
"Foi uma manobra política para barrar pessoas vindas da América Central, do Sul, do Caribe e de alguns lugares da África", pondera Forastieri, "essa foi a forma que o governo encontrou para driblar as regras de asilo e dos direitos humanos de uma forma nunca antes vista".
Com o Título 42 em vigor, cerca de 1,7 milhão de pessoas foram impedidas de entrar nos Estados Unidos, e colocadas em situação de risco. "Com essa lei ativa, os imigrantes não têm direito a qualquer defesa ou argumentação. Não há nenhuma maneira de pedir asilo, e os policiais da fronteira podem mandá-los de volta ao seu país de origem ou ao México, porque, se essa pessoa não puder ser deportada imediatamente, ela é mandada para o México de ônibus ou avião", diz a advogada, "isso tem sido incrivelmente desafiador e perigoso, uma vez que esses imigrantes são mandados de volta para situações de risco".
O problema maior, contudo, é que essa regra parece apenas ser válida na fronteira do Sul dos Estados Unidos, evidenciando o caráter racista do Título 42. "Quando o CDC divulgou o comunicado aplicando a medida, eles foram bastante específicos ao dizer que a lei seria aplicada para certas pessoas. Fica claro, nas entrelinhas, que o Título 42 é usado, sobretudo, para barrar negros e latinos de entrarem nos EUA e, se você olhar para os números, você pode perceber que há uma diferença gritante do volume de pessoas expulsas da fronteira do sul do país, versus as pessoas expulsas da fronteira norte do país".
Desde o primeiro dia que foi colocada em vigor, a regra causou revolta em advogados e ativistas pela causa migratória. Joe Biden, em sua plataforma de campanha, se comprometeu em revogar a medida assim que chegasse à Casa Branca — o que não aconteceu.
"Havia essa grande expectativa de que, com Biden no poder, essa lei seria derrubada e as pessoas voltariam a ter seus direitos garantidos, acessando o mecanismo de asilo quando necessário, mas não foi bem isso o que aconteceu. Na verdade, foi o oposto: Biden chegou a defender a manutenção dessa regra e a estendeu por bastante tempo", destaca a advogada da ONG Community Justice Exchange.
Depois de alguns processos e muita pressão social e política, o democrata líder da Casa Branca finalmente vai revogar o Título 42, que tem o dia 23 de maio como seu ponto final.
Apesar do fim da medida, as preocupações dos ativistas não têm prazo para acabar. "Claro que estamos comemorando a reta final do Título 42, mas o que vai acontecer com os imigrantes a partir de agora? Como eles serão tratados nos Estados Unidos?".
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De acordo com Ana Maria Rivera-Forastieri, apesar de a administração de Joe Biden ter levantado a bandeira migratória em todos os palanques, o discurso eleitoral não se traduziu em prática. "Acho que a diferença entre Trump e Biden é retórica, porque temos visto o número de detenções aumentar desde que o democrata assumiu o poder. No Congresso, Biden está pedindo mais dinheiro para os centros de detenção, e sua equipe abraçou esse programa alternativo, que coloca um sistema de vigilância eletrônica nos imigrantes", e finaliza, "estamos realmente preocupados, e é fácil entender o porquê: basta olhar para o histórico de Biden desde que ele assumiu a Casa Branca".
Na primeira semana de outubro de 2021, mais de 22 mil imigrantes estavam em centros de detenção da Imigração e Alfândega dos EUA (ICE, na sigla em inglês), um aumento de 56% desde que Biden assumiu o cargo, de acordo com estatísticas compiladas pela Câmara de Acesso a Registros Transacionais da Universidade de Syracuse. No geral, 75% dos detidos do ICE não têm antecedentes criminais — o ICE classifica uma pessoa como um criminoso condenado, mesmo que o crime seja tão inócuo quanto não manter um cachorro na coleira.
Desde que anunciou o fim do Título 42, a atual administração tem que lidar com processos de três estados. Missouri, Arizona e Louisiana dizem que a medida vai levar a uma "crise" na fronteira entre EUA e México, e o Texas também tem sido bastante crítico quanto à revogação. Todos esses estados têm, em comum, a bandeira: são governados por republicanos.
Edição: Thales Schmidt