“O Brasil é assentado no racismo. Não existe Brasil sem racismo. O racismo organizou historicamente a desigualdade no Brasil e continua sendo o motor, a espinha dorsal da organização brasileira. O Brasil continua matando pessoas negras. A dinâmica escravocrata permanece na sociedade brasileira. É um país em permanente guerra racial”.
É o que afirma Douglas Belchior ao TUTAMÉIA. Professor de história e liderança da Coalizão Negra por Direitos, nesta entrevista ele fala da sua trajetória de militante, trata da história do movimento negro no país, faz comparações com a realidade nos EUA e diz que a supremacia branca aqui foi mais eficiente do que a estadunidense. Define Bolsonaro como um governo de aprofundamento do genocídio negro brasileiro em máxima escala e defende um engajamento maior na campanha pela eleição de Lula.
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“A eleição não está ganha; se a gente bobear, vamos perder no segundo turno. A tarefa fundamental este ano é eleger Luiz Inácio Lula da Silva. É a pessoa mais qualificada, que tem mais acúmulo, é um símbolo da luta do povo trabalhador brasileiro. Vamos eleger Lula, mas para isso temos que trabalhar; não é automático”, declara.
Ao abordar a permanente guerra racial, Douglas afirma: “É, sim, uma guerra racial porque as condições sociais que geram desigualdade e violência nunca se alteraram. Mesmo nos melhores momentos da nossa experiência republicana, com os governos do PT, com Lula e Dilma, quando políticas públicas voltadas para a comunidade negra foram colocadas em prática. Mesmo nesses momentos de melhora, quando a gente olha para os índices, os que melhoram menos são os negros. Mesmo no momento de crescimento econômico, de diminuição da pobreza e da miséria e de ascensão de uma classe trabalhadora para a classe média”.
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Citando dados de Mário Teodoro, autor de “A Sociedade Desigual”, ele ressalta: “A população negra entre os 10% mais pobres cresce 10%. A participação de negros entre os miseráveis cresce no mesmo momento histórico em que a desigualdade diminui. Mesmo nos melhores momentos de políticas sendo implementadas e melhoria econômica, essa gordura boa, essa fartura chega menos para os negros. Isso constitui uma dinâmica social que gera desigualdade e violência. Ao gerar violência, de novo, somos nós que somos alvo. Houve uma explosão de mortes de jovens negros e de encarceramento da população negra. No mesmo período histórico”.
“Com isso a gente prova que, mesmo tendo um governo popular de esquerda e com políticas públicas, se a gente não tem um olhar específico para esse problema, a gente não o resolve. Isso reafirma e potencializa o argumento sobre políticas específicas, dirigidas, como, por exemplo, política de cotas. Mas não apenas. Políticas em todos os níveis, política de reparação histórica. Então isso continua gerando guerra, o Brasil continua matando pessoas negras. É um país em permanente guerra racial”.
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Traçando paralelos entre Brasil e EUA, dois países com passado escravocrata, Douglas Belchior afirma: “No Brasil não houve uma segregação racial formal. Não teve leis que proibiam negros de existir nos diversos espaços. Mas a nossa dinâmica social trouxe os mesmos resultados ou pior resultado”.
Ele segue: “O apartheid é terrível, mas, ao separar, você delimita um território onde é possível a existência. Racismo no seu conceito primordial é uma dinâmica de estímulo à desumanização do sujeito. Racismo é animalizar uma pessoa ou um grupo social. Categorizar pessoas por raça é dizer que uma é superior à outra. Na colonização, se estabeleceu a ideia de que pessoas negras nem sequer tinham alma. Como não eram pessoas, logo, não era pecado matar e torturar uma pessoa negra. Como um católico apostólico romano consegue dormir de noite depois de açoitar 300 pessoas? Matar, estuprar? Não é possível. Então, para conciliar a ética moral religiosa com a prática cotidiana, você tem que ter um artifício que justifique. Isso é racismo. É um sistema de dominação política, econômica, cultural”.
Belchior lembra das leis de segregação nos EUA. “Tinha universidade para brancos; os negros constituíram as suas. A segregação não impediu que aquela minoria constituísse suas organizações, suas instituições e passasse a existir enquanto sociedade negra nos limites do que era permitido. No Brasil não teve uma lei que não permitisse a entrada, embora houvesse [houve na prática]”.
O professor lembra de fotos de garis –todos negros– e de formandos em medicina –todos brancos. Não há lei que diga que os garis devem ser pretos e que os médicos devem ser brancos.
“Tudo que é direção de elite é branca. Tudo que é base social precarizada, violentada e sustentadora do prédio da sociedade, da produção é negra. Se você comparar a pirâmide social de hoje com a de 1888, as pontas não mudam. A ponta de cima não se altera, é branca. E a base em baixo é preta. Você tem gotas de café no copo de leite no meio. Tem alguma coisa no meio que se altera, mas não é significativo”.
Belchior lembra também de foto recente com lideranças partidárias que se uniram para selar acordo em torno de Lula. “A fotografia das executivas daquilo que será o próximo governo brasileiro, se deus quiser, demonstra isso. Tudo que é a ponta da direção, da economia, da produção cultural, artística é branca. Continua sendo. A lógica escravocrata vai se adaptando na medida em que passa o tempo. Mas, fundamentalmente, com brancos em cima e negros embaixo. Isso não se alterou. Não precisou de leis de apartheid ou leis de segregação. O sistema da supremacia branca no Brasil é mais eficiente do que o sistema da supremacia branca norte-americana”.
Ele enfatiza: “Não se trata de dizer que o movimento negro lá é mais competente do que o nosso. Não é verdade. Se trata de olhar para a supremacia branca norte-americana e dizer que ela fez uma opção de desenvolvimento em que a existência negra fazia sentido. Não por bondade deles, por luta dos negros”.
“No Brasil não faltou luta. Não temos ausência de grandes quadros negros. Não falta elaboração, não falta mobilização. O que a gente tem na história brasileira são grandes movimentos de gente preta miserável seguindo um líder branco. Posso olhar para a articulação dos operários e dizer isso. Com a exceção do Vicentinho, qual foi nossa grande liderança sindical negra? Posso olhar para ao movimento dos sem-terra e dizer a mesma coisa. Para os sem teto. Será que a gente não formou lideranças nossas?”
“O sistema de dominação racial no Brasil, a supremacia branca brasileira que está instituída em toda a dinâmica da sociedade, na política, hegemoniza os partidos de todas as tendências ideológicas. A supremacia branca dirige todo o sistema financeiro, o setor industrial, cultural. São eles que mandam em tudo, nas redes de TV, nos grandes jornais, em todas as instituições, no judiciário. A polícia que mais mata gente no planeta é a brasileira. 80% de quem a polícia mata é gente negra”.