O terceiro ano de mandato de Alberto Fernández na Argentina começou turbulento com uma crise que só parece aprofundar-se. A herança neoliberal do governo de Mauricio Macri, com uma dívida de US$ 44 bilhões, deixou o governo com poucas saídas diante das diferentes alternativas propostas entre as alas da coalizão governista Frente de Todos que, no ano passado, ficaram demarcadas: a albertista e a cristinista.
O modelo de acordo que o presidente Alberto Fernández alcançou com o Fundo Monetário Internacional (FMI) desagrada a sua vice Cristina Kirchner. O deputado federal Máximo Kirchner, filho de Cristina, renunciou à presidência da bancada da coalizão governista no Congresso após o acordo da Casa Rosada com o organismo financeiro internacional. Cristina, por sua vez, apresentou um projeto de lei para saldar a dívida bilionária contraída pelo governo Macri e criticou publicamente Alberto após uma contundente derrota nas prévias das eleições legislativas.
E a inflação aumenta. Em março, o índice de preços ao consumidor medido pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) subiu 6,7% na comparação com fevereiro. É a maior taxa mensal desde abril de 2002. Nos últimos 12 meses, a inflação foi de 55,1%.
Enquanto setores da direita aproveitam a crise em tom de campanha eleitoral para o próximo ano, movimentos populares afirmam que o governo tem deixado a desejar em termos de políticas sociais para a geração de emprego e no atendimento às necessidades de alimentação e moradia. É o que dizem as próprias organizações piqueteras, setores vulnerabilizados da sociedade organizada, e que têm transbordado nas ruas.
A principal proposta que parte das organizações é a geração de um milhão de postos de trabalho em uma dinâmica autossustentável. Ou seja: que os empregos gerados apontem às próprias necessidades dos setores populares, como as áreas de construção, urbanização e infraestrutura, para atender à problemática da moradia, ou a remuneração de tarefas de cuidados, que vulnerabilizam principalmente as mulheres e dissidências sexuais das classes baixas. Segundo a porta-voz da Frente de Organizaciones en Lucha (FOL), Damaris Rolón, esse setor representa 80% das organizações piqueteras.
“Votamos em um plenário um plano de luta gradual”, comenta Rolón, destacando que foi aberta uma mesa de diálogo com o governo por meio do Ministério do Desenvolvimento Social e que a proposta foi apresentada à pasta em setembro de 2021. A organização popular tem ainda propostas nas áreas de emprego, salário mínimo e feminicídio, entre outras.
“As primeiras medidas eram mais curtas e ligadas a pedidos que o governo não respondeu. Isso levou ao acampamento na [Avenida] 9 de Julho e em muitas praças em todo o país.” Rolón menciona o multitudinário acampamento que aconteceu entre 30 de março e 1º de abril, que reuniu milhares de manifestantes dada a falta de avanço nos diálogos com o Ministério do Desenvolvimento Social.
Nesta semana, uma nova reunião, a quinta realizada entre a Unidade Piquetera, que reúne cerca de 30 organizações, e o Ministério também foi frustrada: não foram atendidos os pedidos de reposição do financiamento cortado do programa de inclusão laboral do próprio governo, Potenciar Trabajo, no contexto do pagamento ao FMI. Assim, na quarta-feira (13), um novo protesto levou as organizações às ruas.
“O governo ainda se nega a universalizar os programas sociais e a aumentar o valor, que hoje está em AR$ 16.500 [R$ 687]”, afirmaram os movimentos sociais em comunicado conjunto para a mobilização. “Isso se dá no contexto de um aumento da inflação que arrasa com a renda fixa e de um ajuste que impacta a economia e com salários de fome".
Além do Potenciar Trabajo, o governo tem programas e planos sociais que miram a economia popular. No entanto, os movimentos populares afirmam que as iniciativas não são suficientes para um país com 17 milhões de pessoas na pobreza, cerca de 37,3% da população, de acordo com o Indec.
“O que o governo entende como geração de trabalho são projetos para acessar máquinas e insumos relacionados ao ramo de trabalho, e nos serve muito, mas isso tem um limite”, pontua Rolón. “Não podemos ter uma produção com milhares de pessoas nem competir com o mercado, é trabalhoso inserir nossos produtos. A via de financiamento é muito boa e a utilizamos, mas não é trabalho genuíno. Nossas cooperativas de organizações sociais continuam precarizadas.”
Direitas radicalizam discurso anti-protesto
As conhecidas organizações piqueteras foram determinantes nos protestos da crise econômica de 2001, que culminou em cinco presidentes em pouco mais de uma semana e em uma das mais significativas insurgências populares da história do país. Seu modus operandi se caracteriza principalmente pelas assembleias, os bloqueios de ruas e protestos em forma de acampamentos.
O mais novo acampamento de três dias ganhou repercussão midiática, ainda que, em sua maioria, com uma cobertura negativa sobre os bloqueios de rua por parte dos meios de comunicação hegemônicos. A reação institucional não ficou muito distante disso: o próprio ministro de Desenvolvimento Social, Juan Zabaleta, direcionou duras críticas aos protestos, sugerindo tratar-se de “medidas de trabalhadores contra trabalhadores”.
“Não é necessário bloquear as ruas para falar com o ministro”, disse Zabaleta em uma entrevista à Rádio Mitre, ressaltando seu objetivo de fortalecer a economia popular por meio de recursos para comprar ferramentas, matérias-primas e insumos. “A Argentina vive momentos críticos e temos que transformá-los em oportunidade.”
Os setores da direita têm aproveitado a visibilidade das manifestações para criminalizar a prática de protesto nas ruas, ainda que essa tenha sido uma das ferramentas mais utilizadas para mobilizar iniciativas anti-governo, especialmente durante a pandemia.
Políticos do Partido Republicano (PRO) chegaram a exigir que o Poder Executivo retire os planos sociais dos manifestantes presentes no acampamento. Foi o caso do chefe de governo da cidade de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, que reforçou o pedido em mais de uma oportunidade, e o chefe de gabinete da cidade de Buenos Aires, Felipe Miguel.
HAY QUE SACARLES LOS PLANES SOCIALES A QUIENES CORTEN LAS CALLES Y NO CUMPLAN CON LA LEY. pic.twitter.com/utNdckgnxj
— Horacio Rodríguez Larreta (@horaciorlarreta) April 5, 2022
Agora com maior representatividade política, os discursos mais reacionários aparecem em deputados do partido La Libertad Avanza, liderado por Javier Milei. O deputado da capital federal, Ramiro Marra, lançou o que intitulou de “Movimento Anti-Piquetero Argentino”, com o intuito de “visibilizar a problemática” e “atender os afetados” pelos protestos.
“Entre o governo e a oposição, estão brigando para ver quem é mais de direita”, opina o integrante da Organização Resistir y Luchar, Alejandro Ignaszewski. Para ele, o governo de Alberto Fernández tem dado uma guinada à direita em suas alianças com o poder econômico concentrado visando o pagamento da dívida ao FMI, fazendo eco, de alguma forma, à investida dos setores que querem criminalizar os protestos.
“O governo segue tendências fascistas de Mauricio Macri ao apertar os setores populares e atender ao que manda o FMI, inclusive sendo um dos países que votaram contra a Rússia para retirar o país do Conselho de Direitos Humanos da ONU”, destaca. “Se bem temos essas instâncias de diálogo com o Ministério de Desenvolvimento Social e parte de seu gabinete, não há uma perspectiva clara de soluções concretas para os problemas que apresentamos. Estamos falando de 17 milhões na pobreza”, enfatiza.
Além da crise econômica que joga um papel decisivo para o governo de Fernández, um novo cenário na direita argentina confere um novo tom amplificador de discursos anti-protesto no país. A direita tradicional, como o partido macrista PRO, tem visto seus votos migrarem para os partidos de direita mais radical. Isso foi demonstrado na última eleição legislativa, do ano passado, que elegeu deputados do La Libertad Avanza, que se autointulam “libertários” e promovem políticas opressoras e excludentes com um discurso de liberdade individual e anti-institucional.
“Enchem a boca na mídia dominante para dizer que a solução é trabalhar. Somos parte dessa classe [trabalhadora], e se há algo que sabemos fazer é trabalhar, gerar mais-valia com as nossas mãos”, pontua Ignaszewski. “Não somos o problema. E mais: se a questão é analisada a partir da perspectiva do que está acontecendo com essa crise, somos parte da solução.”
Nas próximas semanas, não há novos protestos agendados, mas continua a tentativa de diálogo com o governo. “Seguimos em estado de alerta, discutindo em assembleias em todo o país sobre como reagir diante da não reação do governo”, afirma Damaris Rolón. “Estamos alertas caso a situação e a nossa condição de vida continuem sendo deterioradas."
Edição: Thales Schmidt