Eu vou contar minha história, que por um lado é muito triste e por outro parece não ter saída. Eu vivia no estado de Delta Amacuro, na fronteira da Venezuela com Trinidade e Tobago. Era 10 de dezembro de 2017, quando minha família foi afetada pela crise, até então não nos dávamos conta disso. Percebemos a crise quando uma das minhas irmãs ficou doente. Quando a levamos para o hospital, já não havia medicamentos, não havia nada. Depois de sete dias minha irmã faleceu.
Em 7 de janeiro de 2018, junto com minha família, meus filhos e minha esposa, decidi vir para o Brasil. Começamos a vender todas as nossas coisas: colchão, cama, botijão de gás, roupas das crianças e as nossas, para conseguirmos o dinheiro para a passagem até a Ciudad Guayana, no estado de Bolívar, ainda na Venezuela. Infelizmente, a venda de nossas coisas não foi suficiente para juntar o dinheiro necessário para a viagem. Então, quando começou a amanhecer, às 4 horas da manhã, chamei meus filhos e minha esposa, e saímos caminhando até um posto de controle, na divisa com outro estado. Aí, perto das 5 horas da manhã, avistei uma pessoa conhecida, que me perguntou para onde eu estava indo. Pedi ajuda para viajar para San Félix (também em Bolívar), mas ela não iria para esse destino e só pode me ajudar em uma parte do caminho.
Paramos de novo às 6 horas. Estava tudo muito solitário, não havia ninguém. Comecei a caminhar. Meus filhos eram pequenos, então coloquei um no braço e o outro nos meus ombros. Levávamos apenas uma bolsa, com duas roupas para cada. Não tínhamos mais nada, nem mesmo para cozinhar. Caminhamos cerca de dois quilômetros, quando passava um ônibus. Eu levantei a mão e o ônibus parou. Ele nos deixou próximo ao rio Orinoco, em San Félix. Atravessamos em uma canoa, num trajeto que leva 15 minutos. Ali eu tive que pagar.
Em San Félix seguimos caminhando. Tentei encontrar algumas pessoas da minha família, mas elas já tinham vindo para o Brasil. Então ficamos ali. Nesse dia não comemos nada, não tínhamos nem água. Ficamos num terminal de ônibus. Eu falei com um rapaz, expliquei a nossa situação. Ele me disse que ainda havia três passagens, eu precisava de quatro, mas paguei as três e embarquei. No mesmo dia, saímos. Viajamos toda a noite e às 10 horas da manhã chegamos em Santa Elena de Uairén (Bolívar), que fica na fronteira com o Brasil.
Na fronteira, eu não tinha dinheiro para pagar um transporte até o lado brasileiro. Então, pedi ajuda e um senhor nos levou. Meus filhos não aguentavam mais de fome. Esse senhor nos deu uma marmita e nos levou até o posto da aduana brasileira. De lá fomos caminhando até a Polícia Federal, onde me informei sobre a localização do abrigo para os refugiados venezuelanos. Eu entendia pouco de português, mas compreendi a informação dada pela polícia, e voltei a caminhar até o abrigo dos indígenas.
Chegando lá, um dos meus filhos menores não resistiu e caiu de fome. Graças a Deus, os funcionários do abrigo nos atenderam rápido e nos levaram para o hospital. Nos deram alimentos, mas a situação era um pouco complicada porque todos os dias chegavam mais pessoas. Então, a comida não era suficiente.
Eu comecei a procurar trabalho. Consegui trabalho, mas era muito pouco, R$5, R$2, R$3. Minha esposa trabalhava comigo, nós recolhíamos recicláveis. Passamos 15 dias em Pacaraima (Roraima), nas ruas. Juntamos R$40. Meus familiares me ajudaram, e fomos para Boa Vista. Lá havia outro abrigo, maior, havia tudo, educação, meus filhos foram para a escola. Nos vacinaram.
Mas ainda não tínhamos documentos, não sabíamos como resolver a situação. Eu queria trabalhar, mas não conseguia porque me pediam a carteira de trabalho, e eu não sabia o que era. Na Venezuela, eu trabalhava em uma empresa privada de limpeza urbana contratada pela prefeitura. Minha esposa trabalhava como professora das crianças menores, na pré-escola. Vivíamos como classe média lá. Depois que aconteceu tudo, se acabou tudo, o salário mínimo não era suficiente.
Em Boa Vista tiramos nossos documentos. Passamos sete meses em Boa Vista, depois fomos para Manaus (Amazonas), onde eu trabalhei na mesma empresa em atividades diferentes: três meses com propaganda na rua, e depois quatro meses em um parque aquático para atender os clientes, e depois mais quatro meses em construção civil. Já tinha carteira de trabalho, mas o empregador não assinou. Quando a pandemia ficou forte, ele nos demitiu. Pedimos que pagassem o tempo que havíamos trabalhado, insistimos, mas fomos ameaçados. Procuramos o Ministério Público do Trabalho, mas até agora não tivemos êxito.
Quando eu vim para o Brasil, meu pai, minha mãe, meu cunhado e um sobrinho que adoeceu (filho da minha irmã que morreu), ficaram na Venezuela. Enviei dinheiro para que viessem para o Brasil e me encontrassem em Manaus. O meu sobrinho mais novo chegou muito doente em Pacaraima, foi hospitalizado, depois o trouxeram para Boa Vista, onde morreu. Uma sobrinha de 18 anos chegou doente e faleceu em Manaus. A situação era difícil nessa cidade, havia um abrigo, mas não recebíamos ajuda para saúde nem para alimentação.
Meu irmão estava em Belém (Pará) e veio para Recife (Pernambuco) antes de mim. Ele me pediu para vir encontrá-lo. Em Manaus, quando a pandemia ficou muito forte, ficamos trancados no abrigo por três meses. Depois disso, decidi sair. Chegamos em Belém, e ficamos nas ruas. Algumas pessoas nos ajudaram, e nos cederam uma casa. Ficamos assim um mês. Meu pai veio para Recife antes de mim, para ficar com meu irmão.
Aqui em Recife as coisas mudaram bastante. Consegui trabalho em uma distribuidora de frutas depois que me viram na rua pedindo ajuda e emprego. Fiquei nessa empresa durante um mês, mas quando pediram meus documentos, estavam vencidos. O empregador me disse que há muita fiscalização, e se pegassem uma pessoa trabalhando sem documentação ele receberia uma multa. Eles disseram que iriam me ajudar a tirar meus documentos, mas isso não aconteceu. Decidi sair desse trabalho pois lembrei de muitas coisas passadas, eu já tinha trabalhado sem registro em outro lugar e não me pagaram o tempo de serviço.
Quando cheguei em Pernambuco, fui morar em Jaboatão. Lá eu comecei a pedir apoio às instituições que trabalham com refugiados. Fui em várias reuniões com a prefeitura, mas sem resultado. Logo depois, minha mãe ficou doente, e nos diziam que ela tinha que ir ao centro para receber atendimento. Era longe e, de um jeito ou de outro, nos negaram acesso à saúde. Cerca de um mês depois, ela faleceu.
Depois disso, segui lutando, porque a situação ficou muito difícil. Eu não tinha dinheiro para pagar aluguel. Achei que iria para a rua, viver embaixo da ponte. A situação estava muito difícil com a pandemia. Minha família me dizia, “a pandemia vai nos matar”, mas, eu não tinha medo. Porque quando se é refugiado, tudo é muito difícil. É muito difícil para te atenderem em um posto de saúde. Nós não dominamos bem o português…
Nessa casa em Jaboatão, eu não tinha condições de pagar a energia, que já estava atrasada há dois meses, prestes a ser cortada. A dona da casa dizia que tínhamos que pagar. Então, vendemos o pouco que tínhamos, pagamos as contas e saímos. Fomos viver com outros indígenas que estavam em Recife. Eles nos ajudaram. A casa estava um pouco ruim, mas era mais seguro do que ficar na rua e o importante era a água para as crianças.
Há dois meses mudamos para esse bairro, aqui é tranquilo. Agora estamos melhor, mas estou um pouco preocupado com a educação das crianças, porque ainda não conseguimos vaga nas escolas. Meus filhos têm 12, 9 e 6 anos, eles estudaram em Manaus e em Jaboatão, mas agora estão fora da escola.
Assim foi desde que saí da Venezuela. Agora, graças a Deus, estamos um pouco melhor. O que falta é educação para as crianças (queremos que elas estudem) e trabalho para os adultos. Isso está difícil. Já procuramos trabalho em vários locais, mas nos dizem que temos que esperar, que nos chamarão quando tiver vaga.
Quando o meu país não estava em crise, era diferente, não pagávamos luz, tínhamos nossa própria casa, tínhamos emprego, tínhamos saúde gratuita. Tudo isso mudou em 2017, e em 2018 piorou. Agora estamos aqui, no Brasil, buscando uma vida melhor.
Celso Zapata é indígena do povo Warao, solicitante da condição de refugiado
Edição: Felipe Mendes