Chile

Primeiros dias do governo Boric apontam sinais de uma crise precoce?

São 3 os desafios imediatos do governo: o conflito mapuche no sul, o problema migratório no norte e a crise econômica

Brasil de Fato | Santiago (Chile) |
Presidente Gabriel Boric discursa no Palácio de La Moneda em março; em 40 dias já enfrentou alguns dos principais desafios do Chile - MARTIN BERNETTI / AFP

Em 11 de março de 2022, iniciou-se o mandato de Gabriel Boric para o período 2022-2026. No segundo turno das eleições presidenciais realizadas em 19 de dezembro de 2021, a coalizão o grupo Apruebo Dignidad liderada por Boric venceu com 55,9% dos votos contra o candidato de extrema direita José Kast, conhecido como "Bolsonaro chileno", que obteve 44,1% dos votos. Estima-se que boa parte das cédulas que levaram Boric à presidência no segundo turno foram votos contrários a Kast.

O que se pôde ver nos três meses entre a vitória eleitoral e a troca de comando presidencial, no dia 11 de março, é que se tornou cada vez mais visível a participação decisiva da atual direção do Partido Socialista do Chile (neoliberal) na estrutura central do novo governo. Paradoxalmente, trata-se de um dos partidos políticos mais criticados pelas forças populares que realizaram a revolta social mais recente no Chile, que impulsionaram a Assembleia Constituinte e também a eleição do mais novo presidente.

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Além disso, já nesse início de governo, estão claros os três desafios imediatos que Boric e equipe devem enfrentar (neste domingo, 24, a nova administração completa 44 dias no poder): o conflito mapuche na região sul do país, o problema migratório no extremo norte e os efeitos da crise econômica que atinge fortemente a maioria da população chilena.

Resistência Mapuche

Assim como ocorre em toda a América Latina, grandes grupos de povos indígenas do Chile resistem historicamente, há cinco séculos, ao seu extermínio como comunidades pré-existentes à invasão europeia e também aos Estados mestiços ocidentalizados.

No território chileno, são vários os povos originários que lutam por sua autonomia e terra ancestral. Mas, sem dúvida, entre eles se destaca o amadurecimento prático e a consistência política da resistência do povo mapuche, localizado principalmente nas regiões de Biobío, La Araucanía, Los Ríos e Los Lagos.

Por meio da ocupação de terra e da sabotagem de máquinas da indústria de celulose e da monocultura de pinheiros, predominantes nessas regiões, diversas comunidades mapuches reivindicam sua independência e a reapropriação de territórios ancestrais invadidos por empresas extrativistas e pelo latifúndio colonial.

Em suma, nas últimas três décadas, os setores mais organizados da resistência mapuche construíram um novo momento de luta, cujo projeto se baseia na libertação e autonomia de todas as suas relações sociais, materiais e culturais, que as próprias comunidades definem como anticapitalistas, além do vínculo harmonioso e mútuo com a natureza.

Diante do fortalecimento da organização mapuche, o governo anterior, de Sebastián Piñera, decretou estado de exceção na área. Em termos práticos, além da multiplicação de forças policiais militarizadas, isso provocou o envio de um forte contingente de militares do exército para a região, que chegaram a ocupar violentamente inclusive escolas do território.

A partir da repressão, dos abusos e da perseguição aos indígenas que lutavam, criou-se um cenário muito semelhante ao da Palestina ou Saara Ocidental invadidos.


Manifestante mapuche é reprimido pelas forças de segurança em Santiago durante protesto no dia 10 de outubro, ainda quando o presidente era Sebastián Piñera / Martin Bernetti / AFP

Uma das estratégias centrais do governo Boric para enfrentar os diversos problemas sociais e políticos é a criação de mesas de diálogo. O povo mapuche vem fazendo pactos e acordos desse tipo há séculos, primeiro com a invasão e a colonização espanhola e, depois, com o Estado chileno. Os mapuches são um povo experiente na arte da guerra: eles conhecem perfeitamente o valor de negociações e tréguas.

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Contudo, surpreendentemente, em 15 de março, uma delegação governamental liderada por Izkia Siches, ministra do Interior, tentou entrar sem aviso ou acordo prévio na comuna de Ercilla, a área com maior concentração de resistência mapuche ativa, e foi afastada por barricadas e até tiros disparados para o alto.

Não houve feridos e Siches se reuniu em Temucuicui com Marcelo Catrillanca, pai de Camilo Catrillanca, assassinado em 2018 pela polícia militar do Chile, os Carabineros. Entretanto, as autoridades indígenas locais esclareceram que Marcelo Catrillanca não é um representante ou porta-voz mapuche, tornando sem sentido tal encontro com o governo.

Além disso, conforme o grupo Resistência Mapuche Lavkenche contou ao Brasil de Fato dias depois, "o governo Boric tentou, por meio de simbolismos, mostrar um rosto permissivo e gentil diante do conflito territorial utilizando a palavra Wallmapu ("território mapuche"), por exemplo, mas sem atacar o problema de fundo, atualmente marcado pela existência de mais de 50 presos políticos mapuches em diferentes prisões do sul como eixo fundamental".

O grupo acrescentou que melhorar o tratamento dos presos "é o mínimo para começar a avaliar a possibilidade de algum tipo de diálogo com o governo atual, que permita reduzir os níveis de conflito no Wallmapu".

Foi ainda mais dura a reação da organização Coordenadora Arauco-Malleco (CAM), que afirma em declaração: "Nossas ações continuarão atingindo a reprodução do grande capital que atua no nosso Wallmapu e fortaleceremos o controle territorial como plataforma básica e única para transformar a realidade criada pelo extrativismo genocida. Nós, da CAM, não dialogaremos com quem tem o objetivo final de aniquilar nosso povo, como é o caso de Monsalve [subsecretário do Ministério do Interior] e companhia".

Após o incidente envolvendo a chefe da pasta do Interior, o novo governo parece ter decidido fazer uma pausa em relação ao chamado "conflito mapuche".

Migração venezuelana e problemas desencadeados

Nos últimos tempos, a questão migratória ganhou centralidade na agenda jornalística, principalmente no que diz respeito à migração de venezuelanos para o Chile. Vale lembrar a participação do direitista Sebastián Piñera durante os acontecimentos em Cúcuta, Colômbia, em 23 de fevereiro de 2019, justamente na fronteira com a República Bolivariana da Venezuela, quando os então líderes dos governos reacionários do continente, organizados por Washington no extinto Grupo de Lima, acompanharam Juan Guaidó em um retumbante fracasso de invasão do território venezuelano, que buscava promover um levante contra o presidente Nicolás Maduro. 

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Naquela ocasião, após o desastre de Cúcuta e tendo como mediador Iván Duque, presidente uribista da Colômbia, Sebastián Piñera "convidou" os golpistas venezuelanos, inclusive militares desertores, a morar no Chile.

Foi o início de uma migração de pessoas da Venezuela para o país andino de forma irregular e desordenada. A partir dos "convidados" originais e de mentiras sobre as reais oportunidades de asilo no Chile, o número de migrantes venezuelanos se expandiu dramaticamente. Assim, os migrantes começaram a entrar pela fronteira norte do Chile em direção à cidade de Iquique.

Ao serem abandonados à própria sorte pelo governo de Piñera, eles acamparam em praças e ruas de Iquique, vivendo da mendicância, até que grupos de chilenos xenófobos incendiaram barracas e pertences de venezuelanos, além de quase lincharem alguns deles.

Carmen Hertz, deputada do Partido Comunista, declarou na ocasião: "Como são miseráveis a covardia típica do racismo e da xenofobia, tão incitadas pela extrema direita e que envergonham a condição humana"

A socióloga María Emilia Tijoux, da Universidade do Chile e coordenadora da Cátedra de Racismos e Migrações Contemporâneas, disse ao Brasil de Fato que, "após terem queimado as barracas e todos os pertences de venezuelanos, chilenos estão perseguindo essas pessoas pelas ruas de Iquique. A violência racista contra a comunidade imigrante é algo feroz. Convidamos a todxs que puderem ajudar a denunciar e trabalhar para acabar com esse castigo". 

Até poucos dias atrás, a migração venezuelana ainda vinha gerando consequências políticas. O último caso veio de um comentário feito pela já mencionada ministra do Interior, Izkia Siches, a respeito da divulgação da informação sobre um avião com venezuelanos que teriam sido repatriados por Piñera, mas que precisou retornar ao Chile com essas pessoas. O comentário foi utilizado pela direita para pedir a renúncia de Siches, até que a confusão fosse esclarecida.

Sobre o mesmo assunto, mas em relação à estratégia migratória do governo Boric, Juan Carlos Tanus, ativista colombiano dos direitos humanos e dos direitos de pessoas migrantes, afirmou em entrevista que a postura do presidente do Chile de distribuir por meio de cotas a quantidade de migrantes da América Latina que esperam entrar no país "é um critério semelhante ao proposto pelos Estados Unidos e Canadá, que determinam um certo número de migrantes de acordo com a necessidade de mão de obra das grandes empresas".

Tanus também menciona que "é dado um visto temporário aos migrantes até que o trabalho previamente ordenado seja concluído". No entanto, o especialista esclarece que esse método não tem qualquer relação com a vida real, viola o direito à migração considerado na Carta de Direitos Humanos da ONU, obstrui a liberdade de mobilidade e limita, drasticamente, a integração continental.

O defensor dos direitos humanos afirma que Gabriel Boric "está imitando as práticas migratórias do regime do seu antecessor, Sebastián Piñera", e acrescenta que "Boric deve, primeiro, resolver as irregularidades migratórias do Chile, já que quando o empresariado diz que precisa de um determinado número de migrantes para certa atividade profissional, na verdade essa mão de obra já está no território há muito tempo e o que se deve fazer é regularizá-la. O Chile tem um 'balanço migratório negativo', ou seja, há muito mais chilenos fora do que migrantes vivendo dentro do país", conclui o especialista.

Políticas econômicas insuficientes

No dia 7 de abril, no contexto de uma inflação acumulada nos últimos 12 meses de 9,4% (a maior em 30 anos), com um salário médio no país de 526 dólares (R$ 2.524) por mês e com o aluguel de uma casa familiar custando 280 dólares (R$ 1.343) em média, o presidente Boric anunciou o Plano de Reativação Econômica no valor de US$ 3,7 bilhões (R$ 17,4 bilhões), o equivalente a pouco mais de 1% do PIB chileno. 

De acordo com Mario Marcel, ministro da Fazenda e ex-presidente do Banco Central, a iniciativa será financiada com a realocação dos orçamentos já estabelecidos e da dívida pública, sem um eventual projeto de lei de reforma tributária progressiva, nem a aplicação de impostos a eventuais capitais de investimento ou ao grande empresariado, e procura beneficiar de forma direcionada microempreendedores e autônomos, chamados por ele de "setores negligenciados".

Além disso, sem superar as clássicas políticas neoliberais do Estado subsidiário, parte dos recursos buscará conter os preços do combustível e do gás para uso doméstico com o aumento de subsídios para as empresas privadas já existentes. O empresariado do transporte coletivo também será subsidiado, para congelar o preço da passagem, que hoje é de aproximadamente um dólar (R$ 4,80).

Não houve anúncios sobre projetos de industrialização, menos ainda eventuais nacionalizações ou sequer participação acionária do Estado em algum setor estratégico. Também não houve nenhuma proposta de regulação de produtos básicos que sofreram um aumento acelerado de preços pela inflação, nem qualquer isenção de Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) ou redução de valores nesses casos. 

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Indagado sobre o impacto das medidas na população mais pobre, Ramón López, doutor em Economia e professor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, afirma ao Brasil de Fato que "elas mitigam parcialmente o efeito da crise sobre as pessoas pobres, mas não são nada quando comparadas aos danos causados pelos aumentos atuais e futuros, por parte do Banco Central, da Taxa de Política Monetária (TPM), a taxa de juros sobre o dinheiro", referindo-se ao fato de que, como política anti-inflacionária, a entidade emissora aumentou a TPM em 7%, tornando mais caro o crédito para todas as suas funções econômicas.

De um modo mais geral, López avalia o pacote de reativação da economia da seguinte forma: "Seria mentira dizer que é possível uma recuperação econômica com a atual política monetária e fiscal. Eles vão injetar 3,7 bilhões de dólares, mas só depois de suspenderem todos os outros subsídios sociais que existiam no ano passado".

Considerando as necessidades objetivas e crescentes de grande parte do país, e apesar da rejeição explícita demonstrada pelo governo, a demanda social por um novo saque de 10% das contas previdenciárias gerenciadas pelas administradoras de fundos de pensões (AFP), que são empresas privadas, é algo que vai se tornando mais popular com o passar dos dias. Essa medida, que sai das contas dos próprios trabalhadores, deve ser resolvida imediatamente no Congresso Nacional.

Edição: Arturo Hartmann