Opinião

Eleição na França mostra que política neoliberal não é capaz de conter o fascismo

É preciso encontrar um caminho em que os partidos e ideais socialistas não se subordinem à lógica neoliberal

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Jean-Luc Mélenchon vota no 2° turno das eleições presidenciais - Christophe Simon / AFP

A votação de Emmanuel Macron (A República em Marcha) na disputa presidencial francesa, em vitória sobre Marine Le Pen (Reagrupamento Nacional), relativamente apertada em relação a outras vezes em que a extrema direita foi ao segundo turno, mostra que o fascismo segue avançando nos escombros do neoliberalismo. É possível, assim, comemorar a derrota de Le Pen, mas estamos longe de poder festejar a vitória de Macron.

O terceiro lugar de Jean-Luc Mélenchon (França Insubmissa), por sua vez, e a correta estratégia de defender que não se votasse em Le Pen sem tentar transformar seus eleitores em apoiadores incondicionais de Macron, aponta para um caminho a ser bem compreendido pela esquerda.

O crescimento do discurso neofascista, na França e em outros países, incluindo, claro, o Brasil, já governado por Jair Bolsonaro, é resultado do esgarçamento dos discursos e das políticas de igualdade. Entregues à própria sorte sob sucessivas gestões neoliberais, os franceses buscam em Le Pen um freio imaginário para a deterioração dos laços de solidariedade no país.

Evidentemente é um discurso falacioso, mas isso não significa que o discurso e a prática neoliberais apontem qualquer solução para os trabalhadores, franceses ou imigrantes, cada vez mais explorados, enquanto uma classe de desocupados por opção vive uma vida cada vez mais luxuosa e improdutiva.

Em outras palavras, a deriva à direita que a política francesa viveu nos anos 2000, com a direita tradicional e o Partido Socialista aplicando políticas neoliberais reiteradamente, pariu o crescimento da extrema direita – antes azarões na corrida eleitoral, agora força recorrente na disputa pelos principais cargos do país.

A divisão da esquerda no primeiro turno, que tirou Mélenchon do segundo, e a postura firme na segunda volta colocam, no entanto, uma nova possibilidade no jogo. Mélenchon não é favorito, mas é forte candidato na disputa por liderar uma base parlamentar significativa e eventualmente até ser eleito primeiro-ministro, caso a esquerda encontre um mínimo de unidade nas eleições para deputado e consiga transformar as legislativas num debate sério sobre como mudar o rumo da história.

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O sistema político francês é bastante diferente do brasileiro. As eleições para a Assembleia Nacional, também para mandatos de cinco anos, coincidem no ano com as eleições presidenciais, mas não na dia exato, como no Brasil. Os franceses que votaram hoje em segundo turno para presidente voltam às urnas nos dias 12 e 19 de junho para escolher os deputados da Assembleia Nacional. E o Parlamento tem o poder de colocar o presidente francês numa situação de redução de poderes, caso eleja um primeiro-ministro de oposição – o que os franceses chamam de “coabitação” e ocorreu em alguns períodos sob as presidências de François Mitterrand (1981-1995) e Jacques Chirac (1995-2007).


Marine Le Pen em evento de campanha em Perpignan, sul da França / Lionel Bonaventure / AFP

Cada um dos 577 distritos (539 na França continental, 27 nos territórios ultramarinos e 11 para eleitores fora do país) elege um deputado. Para que um candidato vença no primeiro turno, é preciso que ele obtenha a maioria absoluta de votos e um número de sufrágios equivalente, no mínimo, a 25% do eleitorado registrado no distrito. Caso estas condições não sejam atendidas, disputa-se um segundo turno entre os candidatos que conseguiram pelo menos 12,5% dos votos do eleitorado registrado. Daí, basta ser o mais votado para conquistar a cadeira na segunda volta.

Macron governou, até agora, com maioria própria. Para ter maioria na Assembleia e, portanto, eleger o primeiro-ministro, são necessários 289 votos. Macron conta, até a eleição que se aproxima, com 346. Mas isso não precisa se repetir.

Assim, o eleitorado pode usar as eleições parlamentares para “corrigir” o voto nas presidenciais. Essa foi a aposta de Mélenchon e de sua nova União Popular. Ao evitar o apoio, mas também a hostilidade aberta, a Macron, ele colocou os partidos de esquerda em condições de serem anti-Le Pen sem serem pró-Macron. Assim, dependendo das conjunturas locais, o voto dado a Macron pode se converter em voto pró-esquerda, enquanto o voto pró-esquerda tende a ser mantido. A esquerda, assim, pode concorrer em cada distrito buscando unidade em torno da resistência ao fascismo – o que, de fato, pode fazer na prática bem melhor do que a direita macronista.

Ao se recusar a uma aliança de subordinação a Macron, o que o Partido Socialista fez outras vezes e que explica, em alguma medida, seu enfraquecimento no cenário nacional, Mélenchon manteve a esquerda atenta e votando taticamente no segundo turno. Cerca de 60% de seus eleitores não votaram em Macron, muitos por rejeição absoluta, outros por rejeição tática: se sua vitória já se mostrava possível sem os votos da esquerda, não era necessário “queimar” a força adquirida para evitar um mal maior.

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Mais do que tática eleitoral, no entanto, Mélenchon deixou claro que é preciso encontrar um caminho em que os partidos e ideais socialistas não se subordinem à lógica e à força eleitoral de neoliberais como Macron. É preciso manter, mesmo nas condições mais adversas, uma posição clara de rejeição dupla: ao fascismo e a seus obstetras neoliberais. Macron pode, individualmente, rejeitar o fascismo de Le Pen, mas sua política tem levado (e tende a continuar levando) o poder para as mãos da extrema direita.

Vencer Macron agora deve ser a palavra de ordem dos diferentes partidos de esquerda da França. Porque só sua derrota pela esquerda pode frear a política inumana da extrema direita francesa – que no primeiro turno já contou com um extremista mais radical que Le Pen, Éric Zemmour, do partido Reconquista.

Talvez não por acaso, noticiou-se neste fim de semana que Michel Temer deve apoiar Jair Bolsonaro num eventual segundo turno contra Lula. E recentemente vimos que as movimentações de um fisicamente quase irreconhecível Aécio Neves têm favorecido a candidatura Bolsonaro. Não são poucos os políticos neoliberais que, entre sua verdadeira oposição e o neofascismo, escolhem aqueles que os fizeram vir ao mundo.