Coluna

A consulesa boliviana

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Ficamos sabendo que o consulado boliviano em Corumbá costumava dar um papel autorizando quem não tinha passaporte a viajar uns poucos dias à Bolívia, e fomos lá - Unsplash
Mas e se eu fosse guerrilheiro e tivesse raspado o bigode antes de vir aqui?

Uma época, todos os anos eu passava uns dias de férias em Salvador. Podia ir pra qualquer lugar, mas terminava sempre na capital baiana.

Teve um ano que resolvi mudar de rumo.

Ricardinho, Marinho, Abílio e eu resolvemos ir para a Bolívia num fim de ano, no famoso trem que atravessava o Pantanal, até Corumbá.

De lá atravessaríamos a fronteira para Puerto Suárez e continuaríamos Bolívia a dentro. Só que não tínhamos passaportes, nem nos preocupamos com isso. E fomos “devolvidos” de Puerto Suárez para Corumbá. Nossa entrada na Bolívia foi suficiente só para tomar menos de uma dúzia de cervejas.

Faço dois parênteses aqui: um é que isso foi em tempos de ditadura lá e aqui, hoje gosto muito da Bolívia; outro é sobre nossa primeira noite em Corumbá: ficamos numa pensão meio precária e eu não conseguia dormir na cama, por causa do calor. Ô, lugar quente! Pus um lençol no chão de cimento e dormi ali. Acordei de madrugada, suando muito, o lençol já estava todo ensopado. Fui à geladeira na sala e tomei um litro de água gelada no gargalo.

Voltemos à viagem: ficamos sabendo que o consulado boliviano em Corumbá costumava dar um papel autorizando quem não tinha passaporte a viajar uns poucos dias à Bolívia, e fomos lá. A consulesa boliviana tinha cara de alemã, o que nos surpreendeu. Esperávamos encontrar uma mulher com traços indígenas e encontramos uma loira de uns cinquenta anos, carrancuda. Olhou a nossa cara e disse:

— Não dou autorização para barbudo e bigodudo.

— Por quê? — perguntei.

— Barbudo e bigodudo é tudo guerrilheiro — respondeu.

Era tempo de guerrilha na Bolívia. Ironizei:

— Quer dizer que só pode entrar na Bolívia guerrilheiro sem barba e sem bigode?

— Sim — respondeu ela, e corrigiu. — Não. Guerrilheiro não pode entrar de jeito nenhum.

Eu era o bigodudo, e provoquei:

— Mas e se eu fosse guerrilheiro e tivesse raspado o bigode antes de vir aqui?

Ela ficou sem resposta e propôs:

— Se vocês rasparem a barba e o bigode eu dou autorização.

Olhei firme pra ela e falei:

— Por causa deste bigode sou capaz de perder coisa muito melhor do que a Bolívia. Não vou rapar coisa nenhuma.

E saímos rindo. Ficamos mais uns dias lá, fomos para Cuiabá e depois atravessamos o Brasil de oeste a leste, e acabamos as férias no lugar de sempre: Salvador. Ô, cidade gostosa!

 

*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Letícia Viola