Na língua nheengatu, Wayuri significa ‘mutirão’, ‘trabalho coletivo’. O idioma é um dos quatro cooficiais de São Miguel da Cachoeira (AM), junto a baniwa, yanomami e tukano. Para ampliar a comunicação nesses idiomas e combater a propagação de notícias falsas e desinformação nas 750 comunidades indígenas do Rio Negro, foi criada em 2017 a Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas.
Naquele mesmo ano, o grupo teve de rebater uma fala do então presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), Nilson Leitão (PSDB-MT), que disse em entrevista à rede de comunicação alemã Deutsche Welle que “o índio de algumas regiões quer plantar soja”. Os comunicadores indígenas gravaram um vídeo em resposta, que foi divulgado pela própria DW: “Nilson Leitão não nos representa”, afirmou Marivelton Barroso Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). “Quero dizer à DW e qualquer outra imprensa que queira falar da pauta indígena que possa entrevistar diretamente os próprios representantes indígenas”, disse o líder.
A atuação dos comunicadores indígenas também foi parar no programa Profissão Repórter, da TV Globo, chamando a atenção para um lixão irregular que ocupa uma área na frente de uma comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira. Claudia Ferraz, do povo Wanano, e Moisés Luiz da Silva gravaram e editaram o vídeo, veiculado no programa em 2019.
O vídeo reverbera o depoimento de uma mãe indígena: “fecharam a escola por causa do lixo”, fala que é repetida em diversos momentos. “Isso mexeu com o poder público, que finalmente se incomodou com os dejetos”, conta a comunicadora indígena Cláudia Ferraz, que participou da primeira formação da Rede Wayuri em 2017. “A comunidade sempre se mobilizou, mas nunca teve retorno. Ainda não teve solução, mas pelo menos teve algum encaminhamento”.
A Rede Wayuri realiza oficinas anuais para capacitação de novos comunicadores. Já na segunda edição, em 2018, abordava fake news. Como a do senador Plínio Valério (PSDB-AM), que disse que ONGs impedem a entrada de brasileiros no Rio Negro, ignorando que a 2ª Brigada de Infantaria de Selva, regimento do exército, está instalada em São Gabriel da Cachoeira.
A iniciativa integra uma série de reportagens do De Olho nos Ruralistas sobre experiências significativas de camponeses, indígenas e quilombolas no campo da comunicação. Confira a primeira reportagem: “Da memória à luta coletiva: conheça iniciativas de comunicadores populares do campo“.
Trabalho na pandemia foi reconhecido internacionalmente
Lar de 23 etnias, a região sofre com ataques coordenados de desinformação. No dia 7 de abril, a Meta, holding que controla o Facebook, derrubou uma rede de contas e perfis falsos que propagava mentiras relacionadas ao desmatamento na Amazônia. Segundo a empresa, oficiais do exército brasileiro eram responsáveis pelas contas, mas as identidades não foram reveladas.
No início da pandemia de Covid-19, a Rede Wayuri foi procurada por instituições e profissionais da linha de frente da saúde para reforçar as orientações sanitárias nas comunidades indígenas. Foram produzidos boletins sobre a doença, protocolos e cuidados, espalhados em áudio. “Circulamos o conteúdo pela radiofonia e até em carros de som”, conta Cláudia. “A informações passadas pelos profissionais em português eram traduzidas nas línguas maternas e sempre produzíamos informativos esclarecendo as dúvidas locais enviadas”.
As falas do presidente Jair Bolsonaro também tiveram que ser desmentidas. “Depois que ele falou em ‘gripezinha’, recorremos ao próprio Drauzio Varella, que é muito conhecido pelas comunidades”, relembra Juliana Radler, jornalista do Instituto Socioambiental em São Gabriel da Cachoeira e parceira da Rede Wayuri. As recomendações personalizadas do médico foram veiculadas via carro de som. “Ele convidava os ‘amigos de São Gabriel da Cachoeira’ aos cuidados com a covid”.
O trabalho foi reconhecido pela entidade internacional Repórteres Sem Fronteiras, que selecionou a Rede Wayuri entre os 30 “heróis da informação” na pandemia.
A pedido das comunidades, os boletins radiofônicos costumam ser difundidos nas línguas locais pela rádio-poste. “Português é a língua que reúne todos, mas o conteúdo se desdobra em diversas línguas”, comenta Juliana. “O modo de fazer jornalismo da Rede não é o do Sudeste, é construído junto com o jeito do Rio Negro”, explica.
Jovens indígenas apresentam programa em rádio local
Em São Gabriel da Cachoeira, os comunicadores indígenas ocupam espaço na rádio FM O Dia com o programa Papo da Maloca, que vai ao ar toda quarta-feira, das 10 às 12 horas, apresentado por Juliana Baré e Cláudia Ferraz. “Trazemos pautas do movimento indígena, situações locais e nacionais, além de ameaças e questões do território”, diz Cláudia. Os líderes indígenas do Rio Negro marcam presença no programa, com especial atenção para as mulheres e para a juventude. “Na rádio aberta levamos nossas questões para um público mais amplo, buscando reconhecimento para dentro e para fora do movimento indígena”.
Cláudia descobriu a vocação para a comunicação no final do ensino médio. Depois da escola, ela buscava trabalho e viu um anúncio de vaga como locutora na rádio AM municipal. Mesmo se considerando tímida e quieta, foi contratada e se apaixonou pelo rádio. “Fiquei lá seis anos, inclusive apresentando o AM Notícia, que trazia noticiário local e mundial”, conta.
Na Rede Wayuri, Cláudia dialoga com todos os 23 povos distribuídos nos três municípios: São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos. “Essa atividade trouxe muita responsabilidade e amadurecimento, fez eu olhar para as minhas raízes, retornar para meus valores”, reflete. Em uma região extensa em tamanho e na diversidade de língua e povos, a comunicação é fundamental. “É muito gratificante trabalhar com os próprios parentes nessa luta pelo território, explicar ameaças e ressaltar a importância do movimento”.
Oficina em 2022 reuniu 55 indígenas e teve fila de espera
Wayuri já era o nome do informativo da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), que existia nos anos 90. A necessidade de comunicação aumentou com a demarcação da TI, em 1998. “Os moradores contam que os representantes da Foirn fizeram um giro entre as comunidades para mostrar a cópia do Diário Oficial confirmando a demarcação”, relata Juliana Radler.
Mas foi em 2017, com a multiplicação de notícias falsas contra organizações na Amazônia visando à divisão e desarticulação de movimentos, que a Foirn e o ISA passaram a trabalhar unidos para ampliar o alcance da comunicação indígena. Nessa época, o grupo já contava com um boletim impresso a cada três meses e uma rede de radioamadores.
A primeira oficina de formação reuniu 15 comunicadores durante 15 dias. Os boletins radiofônicos gradualmente tiveram a periodicidade aumentada. Hoje são veiculados semanalmente e podem ser ouvidos pelo aplicativo Spotify. Já são mais de 100 edições no ar. As comunidades continuam recebendo os informes pela rede de radiofonia. “Os conteúdos ganharam mais densidade política”, diz Juliana.
“Temos acompanhado um salto de interesse dos povos e jovens indígenas, que veem a comunicação como instrumento de luta por direitos”, completa. Em 2022, a oficina oferecia 25 vagas, mas diante da grande procura conseguiu reunir 55 comunicadores. “E ficou gente na fila!”, relembra. Um dos temas foi a criação de podcasts narrativos, com uma produtora especializada. A ideia é ir além do material informativo.
Para alimentar a rede, os comunicadores se reúnem em grupos de mensagem e dividem as tarefas de edição, produção e locução. Os correspondentes monitoram as notícias e cobrem as cinco calhas de rio na região. As informações são enviadas pelo rádio, internet e até por pendrive, aproveitando as viagens de moradores de comunidades mais distantes e sem internet para os centros urbanos.
Além de mais acesso à internet e novas tecnologias, os comunicadores indígenas ganham com formações e devem participar em breve de uma oficina promovida pela Repórteres Sem Fronteiras, parte do programa de apoio ao jornalismo local. Entre os temas, destacam-se a proteção aos comunicadores e a segurança de dados. “Além da comunicação ativista, a turma está gostando de fazer jornalismo”, acrescenta Juliana.