O Projeto de Lei 571/2022, que transfere ao presidente da República o poder de autorizar a mineração em terras indígenas e outras áreas protegidas, é “claramente inconstitucional”. A avaliação é de duas advogadas especialistas em direito ambiental ouvidas pelo Brasil de Fato.
Em tramitação na Câmara, o texto prevê que projetos minerários de “Interesse nacional” poderão ser liberados via decreto presidencial, caso haja contexto de crise global ou interna que prejudique o abastecimento.
A autorização seria válida para qualquer território do país, incluindo unidades de conservação protegidas por lei e propriedades particulares. Pelo texto, indígenas teriam direito “à participação na lavra [mineral]”, e proprietários seriam indenizados.
:: Projeto de lei dá a Bolsonaro poder de liberar mineração em qualquer área do país ::
Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, classificou a proposta como “inconsequente” ao dar “poder ilimitado” ao chefe do Executivo, ferindo princípios como os da legalidade, impessoalidade e moralidade.
“A centralização de poder decisório prevista no projeto de lei é inconstitucional. Vivemos numa democracia, abalada pelas tendências autoritárias do atual governo, mas ainda uma democracia”, apontou.
A advogada Juliana Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), diz que um projeto com essas características nem tramitaria no Congresso se o contexto brasileiro fosse de normalidade institucional.
“O PL se insere em uma estratégia mais geral de avanço sobre essas terras protegidas. Um avanço completamente indiscriminado. Porque são as terras onde ainda existe madeira e recursos florestais”.
Especialista vê fins eleitoreiros
A proposição esbarra ainda na garantia da proteção às unidades de conservação assegurada pela Constituição. Segundo Araújo, a redução do grau de proteção nessas áreas demanda leis específicas para cada caso.
“Para as terras indígenas, há necessidade de lei regulamentadora e autorização do Congresso empreendimento por empreendimento, mediante decreto legislativo, assegurada a oitiva das comunidades afetadas”, apontou.
A autoria da matéria é do deputado José Medeiros (PL-MT). Vice-líder do governo de Jair Bolsonaro (PL), o parlamentar é um dos principais defensores da regulamentação do garimpo ilegal e aliado próximo do presidente.
“Trata-se de uma proposição com fins eleitoreiros. O autor do projeto quer fazer barulho, sabe que não será aprovada. Em anos eleitorais aumenta a quantidade de projetos de lei com essa característica”, pondera integrante do Observatório do Clima.
Cheque em branco para Bolsonaro
Para Juliana Batista, do ISA, o projeto é “completamente absurdo”, pois desrespeita flagrantemente o rito para a regulamentação de mineração em terras indígenas previsto na Constituição, que outorga ao Legislativo o poder de autorizar os empreendimentos do setor.
“Não existe a possibilidade de uma autorização ‘por atacado’ de empreendimentos que o Congresso sequer sabe o que está autorizando. É uma autorização irrestrita, é um cheque em branco ao presidente”, disse.
No Brasil, a mineração em terras indígenas é regida pelo princípio da restritividade constitucional. A Constituição estabeleceu regras gerais para mineração e garimpo em terras indígenas, que seriam desrespeitadas caso o projeto fosse aprovado.
“A mineração nas terras indígenas deve ser a exceção da exceção da exceção. É o último recurso, e não o primeiro, como o governo está querendo colocar”, explicou a advogada.
“Inclusive, para utilização dos recursos dos rios dos lagos e do solo, a Constituição prevê lei complementar. Não é nem lei ordinária. E a maior parte dos empreendimentos minerários atingem esses recursos”, acrescenta.
A desculpa da guerra
Ao justificar a apresentação do projeto, o deputado bolsonarista José Medeiros escreveu que o conflito na Ucrânia poderá prejudicar o abastecimento de fertilizantes, importados principalmente da Rússia.
“O argumento da guerra é absurdo. Já foi demonstrado que a maior parte dos requerimentos minerários estão fora de terras indígenas. O governo usa esses argumentos para avançar sobre essas terras com o nítido propósito de desconfigurá-las”, assevera Batista.
O regime de tramitação do PL 571/2022 não prevê votação no plenário da Câmara. Para ser aprovado, precisará apenas do parecer de três comissões: Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; Minas e Energia; e Constituição e Justiça e de Cidadania.
“Essa matéria sequer deveria tramitar [no Legislativo]. E, se tramitar, deve ter parecer contrário de todas as comissões que avaliem a proposta a partir de uma leitura constitucional”, afirmou.
Outro lado
O Brasil de Fato transmitiu as críticas ao deputado José Medeiros, autor do PL 571/2022, mas assessoria do parlamentar não havia respondido até a publicação da reportagem.
Edição: Felipe Mendes